A SEGUNDA TOMADA DA BASTILHA (4 de Abril de 1954)

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Sem a repercussão pública e os efeitos práticos imediatos que teve a primeira “Tomada da Bastilha”, ocorrida em 25 de Novembro de 1920, em que 40 “conjurados”, chefiados por Alfredo Fernandes Martins (pai), expandiram a sede da Associação Académica de Coimbra (AAC), desde 1913 exiguamente instalada no piso térreo do Colégio de S. Paulo Eremita, na Rua Larga, ocupando o andar nobre e o piso superior, onde funcionava o Instituto de Coimbra (o “Clube dos Lentes”), a chamada “Segunda Tomada da Bastilha”, ocorrida na madrugada de 4 de Abril de 1954, foi rapidamente reprimida pelas forças policiais e silenciada pela Censura.

 

Tal como a primeira, a segunda Tomada da Bastilha teve por motivação a demora no cumprimento das promessas das autoridades no sentido de dotar a AAC de instalações suficientes para as suas múltiplas actividades. Com a demolição, em 1949, do Colégio de S. Paulo Eremita, a AAC foi instalada no antigo Colégio dos Grilos, no que foi desde o início assumido como solução temporária, já que no plano das obras da Cidade Universitária esse edifício estava destinado a residência de professores. Mostraram-se sem fim à vista as sucessivas buscas de local adequado para a nova sede da AAC: “Horto Municipal” (ao cimo do Parque de Santa Cruz, à Rua Pedro Monteiro, onde hoje se situa a Biblioteca Municipal e a Casa da Cultura), a Penitenciária, o antigo Colégio de Santa Ana (Quartel de Infantaria) e finalmente a antiga quinta do Prior-Mor de Santa Cruz, onde então funcionava o “Ninho dos Pequenitos”, uma das relevantes iniciativas de Bissaya Barreto para defesa da maternidade e da infância, que veio a ser o local escolhido.

 

Mas a decisão tardava e, tal como na primeira Tomada da Bastilha, a ocupação, que desta feita durou poucas horas, teve por alvo o vizinho “Clube dos Lentes” (o Instituto de Coimbra), que agora não ocupava os pisos superiores do edifício da Rua Larga, mas o edifício da Rua da Ilha, ao lado do Palácio dos Grilos, onde funcionara (e agora de novo funciona) a Imprensa da Universidade (extinta por Salazar em 1934).

 

O percurso seguido pelos estudantes (imagem 1) saiu do jardim interior do Palácio dos Grilos e, através de um caminho (onde hoje existe uma via para automóveis que vai da Rua Guilherme Moreira, pela fachada norte da Alcáçova, até ao Largo da Porta Férrea), atingiu o jardim traseiro do Instituto de Coimbra, entrando no edifício apenas com quebra de um vidro.

 

Ao tempo (Abril de 1954) eu morava num prédio que faz esquina da Couraça de Lisboa com as Escadas da Pedreira, e frequentava a 3.ª classe da Escola da Sé Velha. Todos os dias de semana fazia o percurso da Rua da Ilha, desde o Colégio de Santo António da Pedreira (Asilo da Infância Desvalida do Doutor Elysio de Moura), passando pelas sedes da AAC e do Instituto, até ao Largo da Sé Velha. Mas nem me dei conta desta efémera segunda Tomada da Bastilha, que ocorreu numa madrugada de sábado para domingo, nem dela saiu qualquer notícia na imprensa. A Censura era eficaz.

 

O episódio é recordado em artigos de dois dos seus protagonistas (Fernando Luís Mendes Silva, ao tempo Presidente da Direcção da AAC, e Arlindo Pinto Gonçalves), que relevam, em termos nem sempre coincidentes, o papel que tiveram na solução do problema da sede da AAC Bissaya Barreto e Santos Costa (um “duro” do regime, mas grande adepto da Académica). No texto de Arlindo Pinto Gonçalves refere-se, por lapso, que o Presidente da AAC era Polybio Serra e Silva, quando era de facto Mendes Silva. Aquele e o seu irmão, Júlio Serra e Silva, bem como o recentemente falecido Dr. Viriato Namora, que se viriam a tornar colaboradores próximos de Bissaya Barreto, e ao tempo eram membros da TUNA, foram, sim, activos participantes nos factos. E a permuta de terrenos que Bissaya pretendia não era para o “Portugal dos Pequenitos” (já inaugurado em 8 de Junho de 1940), mas sim com a “Quinta da Rainha”, onde viria a erguer o Instituto Materno-Infantil.

 

Também o texto, que reproduzo, do livro “AAC – Os Rostos do Poder”, nas páginas dedicadas a Mendes Silva, incorre em algumas inexactidões. Em 1954 ainda não tinha sido concluída a Faculdade de Medicina (foi inaugurada em Maio de 1956); o sítio donde Bissaya Barreto terá chamado os dirigentes da AAC para lhes propor a venda do terreno do “Ninho dos Pequenitos” por 6000 contos, devia ser um edifício fronteiro à entrada do Hospital da Universidade, onde ele tinha o seu consultório, num morro ligado ao último arco do Aqueduto de S. Sebastião, só demolido em finais de Novembro de 1958, já estava eu em Coimbra há mais de 4 anos, morro esse onde uma abertura dava acesso à galeria do aqueduto, que, com outros "índios" da Alta, várias vezes percorri até ao arco principal, com as estátuas de S. Sebastião virado a norte (já libertado das flechas de prata que lhe causaram grande sofrimento ao longo de séculos) e de S. Roque virado a sul, junto à residência particular de Bissaya Barreto. Também não é exacta a afirmação, constante da citada obra, de que foram ocupados os pisos superiores do Palácio dos Grilos. Isso ocorreu na primeira Tomada da Bastilha, no Colégio de S. Paulo Eremita. A AAC desde 1949 ocupou todo o Palácio dos Grilos, A acção de protesto teve por objecto o vizinho prédio da antiga Imprensa da Universidade, na Rua da Ilha, onde estava instalado o Instituto de Coimbra.

 

De facto, já desde os tempos em que ambos partilharam espaços no antigo Colégio Real de S. Paulo Apóstolo (depois Teatro Académico, velha Faculdade de Letras e actual Biblioteca Geral) nunca foram fáceis as relações de vizinhança entre o clube dos lentes e a associações dos estudantes.

 

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Mário Torres