COIMBRA E O SEU ESPAÇO EDIFICADO: A TASCA DAS TIAS CAMELAS

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Em plena Rua Larga, com porta para a Rua do Borralho, situava-se a modesta mas lendária tasca das Camelas, que os estudantes universitários oitocentistas haveriam de tornar imperecível. Essa tasca, curialmente identificada pelo enorme ramo de louro pendente na porta, era explorada por três irmãs de humílima condição mas de doce trato, que fritavam peixe com insuperável mestria e cobravam modestas importâncias por ceias fartas, onde as azeitonas se faziam regar por vinho de boa qualidade e por saborosos pedaços de pão de milho. As quantidades servidas primavam por generosas e os custos das refeições adequavam-se perfeitamente à proverbial pelintrice dos estudantes. Sobre este aspecto, é invocável o testemunho de António Cabral, que nos declara: “O vinho que lá se bebia era bom. Óptimo o pão de milho. Por três vinténs, ceava-se á farta, e ainda às vezes sobravam azeitonas e peixe!”.

As três irmãs, todas Marias, suportavam com bonomia o alarido dos grupos de estudantes esfomeados, que para lá se dirigiam, incutindo ao convívio o reforço da familiaridade. Das três irmãs Camelas, foi a “tia” Maria Joana Camela a que mais iria resistir à sorte inexorável dos mortais, só vindo a falecer nos inícios de 1880. Por isso, foi também ela que mais se enraizou na memória agradecida dos clientes académicos. Era de justiça elementar que assim fosse: é que a falta de dinheiro não comportava a consequência de se negar aos menos abonados o conforto do estômago. A estes era-lhes aberto um crédito que, em certas situações referidas pelos testemunhos do tempo, perdurou para além da conclusão dos respectivos cursos.

Não era vasto o espaço da amesendação, referindo Gonçalves Crespo, estudante em Coimbra entre 1870 e 1877, que no interior “não cabiam à vontade doze pessoas”, que teriam de se distribuir por mesas corridas de pau, enegrecidas pelo tempo, e que se sentar em tripeças ou bancos de três pés. Devido a esta exiguidade, amontoavam-se na parte exterior os demais clientes, que tivessem chegado mais tardiamente, aguardando com paciência a sua vez. Para além da bonomia no acolhimento, era um factor de grande admiração e de popularidade a circunstância de não serem reconhecidas quaisquer precedências, oriundas da praxe académica. Queremos com isto dizer que na tasca das Camelas se respeitava sempre a ordem das chegadas, pelo que um caloiro nunca seria preterido, no acto de ser servido, por um outro qualquer estudante, mesmo que podendo alegar maior veterania.

A reconstituição do ambiente interior não ficaria completa se fosse omitida a referência à fumarada, causada pelas frituras, a menção aos alguidares de barro onde jaziam as sardinhas, o sável e as enguias, provavelmente também os robalos e as tainhas, bem como a ornamentação, nas paredes, de estampas pias, em harmonia com a profunda religiosidade das Camelas. A profunda devoção com que elas distinguiam Santo António traduzia-se no pedido, por elas feito à generalidade dos frequentadores da tasca, de que dessem um pataco para a compra do azeite de uma candeia de bico que permanentemente o iluminava. Isto levou a que a irreverência da estudantada passasse a mencionar o santo como … o azeiteiro.

As tias Camelas indagavam juntos dos sobrinhos o que lhes tinham servido e era através desta relação de inteira confiança que estabeleciam o preço da refeição. Mas esta espórtula apresentava uma curiosa particularidade: aos vinténs apurados como gasto ou dispêndio era sempre acrescida mais uma moeda de cinco réis, pelo que a cobrança poderia ser de oito e cinco, dez e cinco, doze e cinco, etc. Este insólito costume foi registado na poesia por António Nobre, no seu emblemático livro Só:

Para mim era um sonho, o céu cheio de estrelas:

Nossa Senhora a dar de cear aos estudantes

Por 6 e 5! Mas ah! foi-se a virgem dantes

Tia Camela … só ficou a camelice.

Como já se mencionou, o horário de funcionamento era predominantemente noctuno e as noites de maior movimento decorriam aos sábados. A clientela, na sua esmagadora maioria recrutava-se no elemento estudantil – de tal maneira que Antão de Vasconcelos, o Mata Carochas, chegar ao ponto de declarar que “não houve um estudante de Coimbra que ali não tivesse comido e bebido, ao menos uma vez na vida”. E acrescentava ainda: “Se as paredes, as mesas, as candeias e os alguidares pudessem falar, aquela Tascaseria a mais completa, perfeita e acabada de todas as crónicas da Academia de Coimbra “. Mas a frequência não se circunscrevia à mocidade estudiosa da Universidade. Não foram poucos os professores que se dignaram provar o peixe frito das Camelas. Por outro lado, como a tasca era próxima do Teatro Académico, vários actores e animadores dos espectáculos nele promovidos, após as actuações, faziam questão em marcar presença. As memórias coevas certificam que os actores Taborda e Rossi e o prestidigitador Hermann, nomes fortes dos palcos do tempo, passaram por lá.

Era também ali que Eça de Queiroz, no último ano do seu curso (1866), frequentemente ceava, na companhia de João Penha, seu colega de curso e companheiro de quarto. Registou esta memória grata na Correspondência de Fradique Mendes, escrevendo: “Então, alegremente, recordando Coimbra, Fradique perguntou-me pelo Pedro Penedo, pelo Pais, por outros lentes ainda, do antigo tipo fradesco e bruto, depois pelas tias Camelas, essas encantadoras velhas, que escrupulosamente, através de lascivas graçolas de estudantes, tinham permanecido virgens, para poderem no Céu, ao lado de Santa Cecília, passar toda uma eternidade a tocar harpa ... Era uma das suas memórias melhores de Coimbra essa taberna das tias Camelas, e as ceias desabaladas que custavam setenta réis, comidas ruidosamente na penumbra fumarenta das pipas, com o prato de sardinhas em cima dos joelhos, por entre temerosas contendas de metafísica e de arte. E que sardinhas! Que arte divina em frigir o peixe! “.

As manas Marias, que viveram uma boa parte das suas vidas, num ambiente de estúrdia boémia e de costumes não muito exemplares, morreram em segura presunção de virgindade. Mas não teria sido essa nota de pureza que lhes granjeou um halo profunda estima nos anais da Academia oitocentista. Foi esse jeito de se relacionarem solidariamente com várias gerações académicas – e de lhes matarem a fome por pouco dinheiro… - que as tornou inesquecíveis.

Amadeu Homem