"CONIMBRICAE ENCOMIUM / ELOGIO DE COIMBRA"

Mario-Torres51.png 

"UM LIVRO RARÍSSIMO DE UM NOTÁVEL LITERATO"

 "Um livro raríssimo de um notável literato" é o título do artigo de Augusto Mendes Simões de Castro, publicado na revista «O Instituto», em 1887, dando notícia de ter adquirido num leilão em Lisboa "um livro muito interessante, que temos na conta dos de maior raridade", intitulado «Conimbricæ Encomium ab Ignatio Morali editum. Conimbricæ, apud Joannem Barrerium, Typographum Regium. M.D.LIIII». Tratava-se de "um folheto de vinte páginas, no formato ordinariamente chamado de 4.º", com o "frontispício adornado de uma estampa de gravura em madeira que representa o brasão de Coimbra", a que se seguia, "na página 3, a dedicatória a D. António, filho do Infante D. Luís", começando na imediata o poemeto.

 A convicção de que se trataria do único exemplar existente em Portugal fundava-se em não ter achado tal obra nas Bibliotecas Nacional de Lisboa, da Universidade de Coimbra ou Municipal do Porto, nem nas boas livrarias dos muitos bibliógrafos que consultou, descobrindo apenas uma cópia manuscrita na Biblioteca Pública de Évora.

 Por isso, decidiu Simões de Castro reimprimir o «Conimbricæ Encomium» nas páginas de «O Instituto», salvando do completo desaparecimento uma composição meritória: "Nesta composição, em versos de notável correção e elegância, matizados de amena poesia e sólida erudição, lê-se com interesse a história, embora fabulosa, da cidade de Coimbra, breves descrições dos seus monumentos, dos seus mais notáveis edifícios e dos lugares mais celebrados das suas pitorescas e belas cercanias. É um curioso elucidário do que era a cidade de Coimbra em meados do século XVI.”

 Inácio de Morais, notável humanista e poeta novilatino, nasceu em ano indeterminado do início do século XVI, em Bragança. Beneficiando de uma bolsa de D. João III, foi estudar para a Universidade de Paris, por volta de 1527, aí se formando em Artes, com o grau de Mestre em 1530. Frequentou em seguida a Universidade de Lovaina. Regressando a Portugal, foi professor de Artes (Latim, Gramática, Retórica e Poética) nos mosteiros jeronomitas de Santa Maria de Belém e da Penha Longa, no Colégio de Santa Marinha da Costa (em Guimarães, onde foi mestre de D. Duarte, filho bastardo de D. João III, e de D. António, futuro Prior do Crato, filho bastardo do Infante D. Luís), nos Colégios do Mosteiro de Santa Cruz, no Colégio Real das Artes e na Universidade de Coimbra. Em 1579 foi para o Mosteiro de Alcobaça, "ler" aos frades, aí falecendo em 1580.

 O exemplar de «Conimbricæ Encomium» adquirido por Simões de Castro deve ser o que se encontra atualmente na Biblioteca Nacional de Portugal, único de que há registo nos catálogos disponíveis das bibliotecas portuguesas.

 Duas outras edições foram feitas do texto latino: a terceira, por Joaquim Alves de Sousa, em 1890; e a quarta, por Mário Brandão, em 1938.

 Joaquim Alves de Sousa, com vista a "dar publicidade ainda maior ao famoso e dantes muito raro «Elogio de Coimbra», em versos latinos, pelo famoso latinista e professor da mesma Universidade no século XVI, Inácio de Morais", promoveu nova reprodução do poema nas páginas do jornal «Instituições Cristãs», assinalando que: “Encontram-se por todo este poema notícias curiosíssimas sobre a Coimbra do tempo de D. João III, quando este monarca transferiu para ali a Universidade então estabelecida em Lisboa. Referem-se vários usos e costumes da população académica, discente e docente, de alguns dos quais ainda hoje se conservam não poucos vestígios. Dá-se minuciosa informação das muitas casas religiosas de um e outro sexo ali existentes, de outros edifícios públicos notáveis e de alguns palácios de antigos fidalgos. Descreve-se a beleza dos horizontes, a salubridade dos ares, a fertilidade do solo, a amenidade dos arredores, a índole bondosa, pacífica e hospitaleira, e até a graça natural e folguedos populares dos habitantes da cidade ridente – «urbem ridentem»; tudo com tanto primor de elocução poética e num tom repassado de tanta religiosidade, que o leitor, além de admirar o vivo engenho e grande erudição do autor, facilmente suporia pertencer ele à classe eclesiástica. Os versos são excelentes – espontâneos, corretos, elegantes e de sabor verdadeiramente clássico; tudo a abonar os subidos créditos que o autor sempre gozou como insigne poeta latino”.

 Relativamente à versão do texto latino promovida por Simões de Castro, e com autorização deste, Alves de Sousa, na considerada "3.ª edição" da obra, introduziu as seguintes modificações: emprego da "ortografia latina hodierna"; retirada de "algumas incorreções, que o nímio escrúpulo de seguir à risca o texto da 1.ª edição deixara passar, com detrimento da verdade e da clareza"; separação com intervalos dos principais assuntos tratados no poema e aposição à margem do texto de mais algumas epígrafes ou títulos, para o tornar "mais fácil de se entender e a sua leitura mais agradável e desenfastiada".

 Finalmente, com o impulso e auxílio de António de Vasconcelos, Mário Brandão deu à estampa a 4.ª edição do "formoso poemeto", "belíssima descrição em versos latinos da Coimbra do Renascimento", optando por respeitar a ortografia da edição original, emendando um ou outro erro tipográfico e grafando com letra maiúscula os nomes próprios.

 A única versão portuguesa completa continua a ser a que em 1935 A. da Rocha Brito, como sua colaboração na homenagem prestada pela revista «O Instituto» a Augusto Mendes Simões de Castro, fez desse “delicioso e encomiástico poemeto, no qual o filho de Trás-os-Montes deixa transbordar toda a sua paixão por esta terra conimbricense, que, não sendo a sua, amava com amor de filho”.

 O tradutor, professor da Faculdade de Medicina, espírito interessado em questões de história e literatura, em especial relacionadas com Coimbra, honestamente reconhece, na nota que antecede a sua tradução, que de latim sabia o que aprendera nos sete anos em que frequentou o Liceu do Porto.

 Américo da Costa Ramalho mostra-se particularmente crítico da qualidade da tradução de A. da Rocha Brito, mas o certo é que a única tradução completa desse poema continua a ser a dele, "de certo melhor médico do que latinista", no dizer de Costa Ramalho, que reconhece que "até agora ninguém se aventurou a fazer nova tradução", pois ele próprio, que tinha "há alguns anos uma versão do «Elogio de Coimbra»", acabou por não a publicar, "por não ter ainda conseguido identificar dois ou três personagens do mundo não universitário, nele mencionados” . Da responsabilidade de Costa Ramalho apenas se localizaram, em diversas publicações suas, traduções de algumas parcelas do «Conimbricæ Encomium»: Dedicatória e versos 1-2, 59-70, 111-112, 167-170 e 387-426.

 Por último, Aires Pereira do Couto, que, na sua dissertação de doutoramento, reproduziu e traduziu toda a restante obra conhecida de Inácio de Morais (cartas, orações e obras poéticas), regista: "A relativa facilidade em encontrar esta obra [o «Conimbricæ Encomium»] e o facto de já existir uma tradução portuguesa, levou a que se optasse pela sua não inclusão neste estudo, para o não alongar em demasia", limitando-se a traduzir os versos 151-162, 173-174 e 491-494.

 Na presente edição procede-se à reprodução, em «fac-simile», da única edição «princeps» conhecida (existente na Biblioteca Nacional de Portugal), seguida da versão latina publicada por Mário Brandão em confronto com a única versão portuguesa completa (da responsabilidade de A. da Rocha Brito), com aditamento das variantes parcelares propostas por Sousa Viterbo, Américo da Costa Ramalho e Aires Pereira do Couto, e, no final, notas complementares (relativas a personagens históricas e míticas, locais, edifícios e expressões menos comuns usadas no poema) e uma desenvolvida notícia biobibliográfica de Inácio de Morais.

 Com esta iniciativa pretende-se corrigir, na medida do possível, o injusto esquecimento de Inácio de Morais e da sua obra, lamentado por Américo da Costa Ramalho: “Inácio de Morais foi um dos cantores da Coimbra do seu tempo, embora os conimbricenses de hoje o não conheçam nem sequer de nome. Aliás, também os universitários, a cujo número ele pertenceu, e cuja «Alma Mater» ele exaltou, pouco ou nada dele sabem."

 No seu poema, começa Inácio de Morais por dar uma versão da fundação de Coimbra e do sentido do seu brasão diversa da mais divulgada, difundida a partir de Frei Bernardo de Brito («Monarquia Lusitana», Parte II, Livro VI, cap. III): a de que teria sido Ataces, rei dos alanos, que, depois de destruir Conimbriga, teria fundado nova cidade na margem direita do Mondego, e que, sendo atacado por um seu antigo aliado, Hermenerico, rei dos suevos, o perseguiu até ao Douro, tendo Hermenerico, para conseguir a paz, dado a Ataces a sua filha Cindasunda em casamento; para celebrar a paz, mandou esculpir nos muros da nova Coimbra o brasão com uma dama (Cindasunda) sobre uma taça (ou torre), ladeada por uma serpente ou grifo (dragão alado), insígnias de Hermenerico, e por um leão, insígnias suas. Inácio de Morais, ao invés, inspira-se na história (cantada no poema «Punica», de Sílio Itálico) de Pirene, filha do rei Bébrix, que, desonrada e abandonada por Hércules, e tendo gerado uma serpente, se refugiou na floresta, onde é despedaçada pelas feras. Regressado Hércules, recolhe o rosto de Pirene numa taça ou urna e sepulta o resto do corpo sob um monte de pedras do tamanho da sua dor: os Montes Pirenéus. Tendo fundado depois a cidade de Coimbra, dá-lhe por brasão a figura de Pirene, numa taça, rodeada pela serpente que gerara e por um leão, em representação das feras que a despedaçaram (ou do próprio Hércules, que, no primeiro dos seus doze trabalhos, após matar o leão de Nimeia, passou a usar o sua pele como manto e a cabeça como elmo). De seguida, o «Elogio de Coimbra» "gira entre dois polos, o rural com o louvor da fertilidade dos campos que rodeiam a cidade, a abundância da água, o clima equilibrado, o sossego bucólico e os bons ares que ajudam os estudantes a espairecer; e o polo urbano com o palácio real, transformado em sede da Universidade, e os colégios da Alta. Na Baixa, ficam o mosteiro de Santa Cruz e os colégios da rua da Sofia. A construção dos novos edifícios colegiais, que as ordens religiosas tinham já levantado ou estavam levantando em 1554, e os nomes de alguns dos seus promotores completam o quadro otimista da nova cidade universitária de Portugal".

  Na síntese de António de Vasconcelos: “É formosíssimo e interessantíssimo este poemeto, em que se descreve a cidade de Coimbra do meado do século XVI, quando a Universidade, recentemente para ela transferida por D. João III, estava na pujança da sua atividade e glória. Surpreendem-se, como num instantâneo fotográfico, algumas praxes e usos académicos, dos quais se conservaram vestígios até nossos dias. Descreve-se a cidade em si, as suas igrejas, palácios, mosteiros, colégios universitários; as belezas dos arrabaldes, a amenidade do clima, a índole carinhosa e pacífica da população indígena, etc. etc. A cultura clássica do autor, o seu admirável engenho, o seu estro poético, a espontaneidade e correção magistral com que escrevia versos admiráveis, que bem podiam ser atribuídos a Virgílio, Ovídio ou Horácio, tudo torna precioso o opúsculo, e encarece o serviço prestado por Simões de Castro, salvando-o”.

Mário Araújo Torres

 

Nota: Recolha de textos e notas por Mário Araújo Torres.

 Em Coimbra, pode ser adquirido na livraria "Lápis de Memórias". no Centro Comercial Atrium Solum.