DOIS MODOS DE LER UMA CIDADE (Primeira Parte)

Amadeu-Homem146.png

Coimbra foi para Teófilo Braga uma arena de luta e de afirmação. Nunca seria uma terra de carícias e muito menos de identificações. Em 1902, reportando-se ao momento em que se despediu da ilha de S. Miguel para realizar na Universidade de Coimbra a ambição de se tornar doutor, depois de ter abandonado o projecto de ganhar a vida em paragens americanas, escreveu estas cruas palavras: “ Chegou esse dia, [ o da sua emancipação ], e como açoriano fazia vôo para a América, para a vida exuberante de acção; meu pai sabendo da minha resolução propôs-me Coimbra. Em vez de retemperar-me no oceano, caí no charco. “Irá falar no “mal estar de uma adaptação a um meio turbulento de dois mil estudantes, atmosfera medieval de dogmáticos doutores, que mantinham a respeitabilidade científica pelo terror autoritário, sob a espectativa das reprovações (…) ambiente que era um lazareto claustrado às ideias modernas”. Poderia pensar-se que este desprimor com que aqui vemos mencionar Coimbra, na sua realidade física, académica e social, tivesse resultado de uma passageira impressão. Mas não foi esse o caso. Os diversos juízos que foram saindo da pena do estudante ilhéu e mesmo os que enunciou após ter concluído o seu curso, são reveladores de uma distância e de uma secura que nada ficava a dever à psicologia que tanto censurara à madrasta, à injusta noverca, Dnª Ricarda Joaquina Marfim Pereira. Numa outra carta, endereçada em 1865 a Dnª Maria do Carmo Barros Leite, que viria a ser a esposa que o acompanhou na vida, informa-a que acabou de se mudar para a Rua do Forno, nº 10 – 2º andar, particularizando: “é uma rua estreita, infecta, como todas as de Coimbra, mas perto da Universidade”. 

Valerá a pena mencionar igualmente a missiva preparada para o livro Mocidade de Teófilo, atribuído a Francisco Maria Supico, datada de 24 de Fevereiro de 1862 – e que nada garante ser fiel à cronologia mencionada – na qual Teófilo Braga confessa ao seu amigo e protector: “ Para vencer o meu combate da vida, adquiri aqui um conhecimento nítido do meio coimbrão, dos seus tipos heteróclitos, o lente sempre hostil, no seu isolamento cardinalesco e pedante, o estudante sempre díscolo, e desvairando na troça desenfreada, e no meio disto o futrica ou o filhote da terra, exercendo um antipático parasitismo. Tinha-me visto livre da atmosfera de ódio em que respirei durante quinze anos, e agora estou patinhando em um charco de ódio, que me envenenaria se eu me não fortificasse pela actividade mental e pela absorção das ideias modernas que vim aqui encontrar nalgumas das obras mais fulgurantes do século”. Quanto aos compêndios escolares não eram mais do que “palha podre vendidos como canela, e impostos aos estudantes para desobstruir os armazéns da imprensa e fazer receita para a Universidade”.

Teófilo não acompanhará os estudantes da sua geração no modo de avaliar Coimbra quanto à totalidade das suas implicações, como meio geográfico, académico e social. O juízo enunciado genericamente pelos académicos do tempo encontra-se laconicamente resumido por estas palavras de Trindade Coelho: “fora das aulas uma delícia (…); mas da Universidade para dentro, um horror! (… ) Eu não entendia os lentes, eu não entendia aquele sistema de ensino, eu não via o princípio das coisas, nem o meio, nem o fim. Tudo era vago e incorpóreo, aéreo e sem raiz, banal, inútil, artificial”. Com palavras que não se distanciavam muito do maravilhamento e da rejeição de Trindade Coelho, podemos sustentar que tal foi a avaliação da chamada Geração de 70 do século oitocentista. Ou seja: a maravilha de Coimbra-cidade, do convívio boémio, dos passeios pelos arrabaldes, até mesmo das praxes e das troças, em contraste irremediável com a profunda decepção provocada pelos conteúdos e pelos métodos do ensino universitário, pelo distanciamento e autoritarismo de alguns reitores e de numerosos professores, pelo medievalismo de uma instituição universitária que, mesmo no simples plano da sua regulamentação interna, parara no tempo. O tocar da cabra, um dos sinos da torre da Universidade, retirava das ruas os novatos, os caloiros e muitos dos ursos ou estudantes premiados. Iniciavam-se as horas tristes, que, iluminadas pelo proverbial candeeiro metálico de três bicos, se prolongavam noite fora. Os estudantes recebiam os apontamentos das matérias leccionadas ou sebentas nos respectivos domicílios, por entrega em mão de distribuidores, geralmente pessoas humildes e iletradas. A obrigação do bom estudante era a de decorar a sebenta, atendendo ao risco de poder ser chamado à lição no dia seguinte. Caso isso acontecesse, o estudante chamado à lição faria prova do seu estatuto de bom aluno se lograsse reproduzir servilmente a sebenta, no ipsis verbis do seu fraseado.

Voltemos a dar a palavra a Trindade Coelho: ““Se um estudante dá duas lições boas, embora não saiba nada, tem a frequência feita e o ano seguro : passa, porque o acto é uma “formalidade” ; mas se dá uma lição má , embora saiba e tenha estudado ( o que depende às vezes do humor do lente, e outras vezes do humor do rapaz, ou de qualquer tola banalidade !), já tem a frequência tremida , e o ano arriscado ! “.

O lente dispunha da mais ampla discricionariedade, uma vez que poderia, de forma propositada ou acidental, abster-se de chamar o aluno à lição. Neste caso, dizia-se que o estudante andava à corda, tendo de memorizar a lição todos os dias, por não lhe ser possível prever o momento em que o docente o iria interpelar. Como é óbvio, este sistema em nada favorecia a correcção e cordialidade do convívio entre quem ensinava e quem tentava aprender. Neste aspecto, a crítica de Teófilo Braga revelou-se certeira, quando escreveu no segundo volume d’As modernas ideias na literatura portuguesa : “ “Tremia-se diante do Neiva, quando ele no silêncio sepulcral de alguns segundos fixava o nome do infeliz que tinha de dizer-lhe letra por letra parágrafos inteiros das Ordenações do Reino ; tremia-se diante do Pais Novo, que aglomerava a torto e a direito dezenas de citações de leis, decretos e alvarás sobre uma cousa, que uma simples frase de bom senso bastava para invalidar ou autenticar. Os que se submetiam a esta disciplina ficavam idiotas, e o país todos os anos se povoava de bacharéis formados, que durante muito tempo foram símbolos de nulidade “.

Não andava longe disto o que Antero de Quental escreveu, em Junho de 1865, sob o pseudónimo jornalístico de “O Bacharel José”: “Continuam os actos. Os doutores dizem coisas que só eles sabem e entendem; os estudantes respondem como não entendem nem sabem. É assim que se faz uma geração fadada para os mais prósperos destinos. O país é um grande ratão. Nós é que não sei bem o que mesmo somos”. 

Foi a magia do estilo sem paralelo de Eça de Queirós que estabeleceu a antinomia entre “essa Coimbra de tão lavados e doces ares, do Salgueiral até Celas” , a mesma Coimbra na qual “ por uma “noite macia de Abril ou Maio” o estudante Eça ouvira, completamente rendido, improvisar poeticamente na escadaria da Sé Nova um outro estudante  - que não podemos saber se nessa altura grafava o seu nome como Antero ou Anthero, se conservava ou não o sobrenome Tarquinio, se assinava documentos oficiais e pessoais como Anthero do Quental ou simplesmente como Antero de Quental – era essa Coimbra que conclamava a geração académica de Eça e Antero “ a amar a Humanidade , como há pouco, no ultra-romantismo se amara Elvira, vestida de cassa branca ao luar” , era enfim , essa a cidade com a qual destoava a sua Universidade : em torno de tal geração, “ negra e dura como uma muralha, pesando, dando sobre as almas, estava a Universidade” . Erguia-se ela “ com as suas formas diferentes de comprimir, escurecer as almas : - o seu autoritarismo, anulando toda a liberdade e resistência moral : o seu favoritismo, deprimindo, acostumando o homem a temer, a disfarçar, a vergar a espinha : o seu literatismo, representado na horrenda sebenta, na exigência do ipsis verbis, para quem toda a criação intelectual é daninha : o seu foro, tão anacrónico como  as velhas alabardas dos verdeais que o mantinham : a sua negra torre, donde partiam, ressuscitando o precetto da Roma jesuítica do século XVIII, as badaladas da “cabra” , por entre o voo dos morcegos; a sua “chamada”, espalhando nos espíritos o terror disciplinar de quartel ; os seus lentes crassos e crúzios, os seus Britos e os seus Neivas, o praxismo poeirento dos seus Pais Novos, e a rija penedia dos seus Penedos ! A Universidade, que em todas as nações é para os estudantes uma Alma Mater, a mãe criadora, por quem sempre se conserva através da vida um amor filial, era para nós uma madrasta amarga, carrancuda, rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca, pela sujeição à “sebenta”, esse grau que o Estado, seu cúmplice, tornava a chave das carreiras.”

Amadeu Homem