"NOTÍCIA SOBRE O ENCANAMENTO DO RIO MONDEGO",

Pelo Doutor AGOSTINHO JOSÉ PINTO DE ALMEIDA,

Professor da Faculdade de Matemática e Encarregado da Direção das Obras Hidráulicas do Rio Mondego,

Publicado no "Diário do Governo", n.ºs 96 a 98, de 25 a 27/4/1822, pp. 673-675, 682-684 e 690-692.

 

"NOTÍCIA SOBRE O ENCANAMENTO DO RIO MONDEGO,

 

O abaixo-assinado, tendo chegado a esta cidade de Lisboa e sendo-lhe determinado por S. Ex.ª o Ministro dos Negócios do Reino que se desse ao público uma notícia das importantes obras que ultimamente se têm construído no encanamento do rio Mondego, se apressa a satisfazer às ordens de S. Ex.ª do melhor modo que lhe é possível, na distância em que se acha, e longe de alguns subsídios, que lhe seriam necessários para preencher cabalmente os seus desejos; e ainda que já tenha traçado um plano mais extenso sobre a natureza dos rios, maneira de tirar deles e dos campos circunvizinhos as maiores vantagens, formando do Mondego um caso particular das leis gerais que estabelece, cuja obra ainda incompleta carece de oportunidade para se concluir, que atualmente não possui, julga contudo conveniente oferecer ao público desde já as seguintes reflexões sobre uma obra tantas vezes projetada e empreendida, e tantas vezes malograda por efeito da inconstância e da falta de conhecimentos necessários aos seus Diretores.

A opinião geralmente seguida, fundada numa tradição absurda, na ignorância dos nossos escritores e na falta de observações exatas, de que o Mondego eleva rapidamente o seu álveo e que assim continuará sem limites é em verdade um erro, que tem sido fatal, por ministrar princípios falsos aos Diretores das suas Obras e dirigir a opinião pública contra tudo quanto se possa empreender a este respeito. Eu sei que existe uma tendência geral para dizer mal de obras de semelhante natureza; no berço da Hidráulica, escrevia D. Benedetto Castelli: «e sempre maggior fatica ni è stata l'accomodare gli animi ed i cervelli degli uomini che il porre in freno le gran forze dei fiumi e de precipito si torrente, e rascingare varie peludi.»

Na «História do Canal de Languedoc», por De La Lande, a pág. 21, eu leio o seguinte: «Mr. Froidour, écrivant le 5 mai 1671, disait : “En l'état qui sont les travaux, il y reste si peu de choses à faire, que j'ose vous assurer que dans le cours de cette année ce canal sera tellement achevé, que l'on pourra, sans aucun contredit, s'en servir pour la navigation. Cependant si vous voulez écouter la plupart des gens du pays, vous n'en trouverez presque point, qui ne vous soutiennent que cette entreprise n’aura aucun succès, car outre les préjugées de l'ignorance, plusieurs en parlent par chagrin, peut-être parce que pour faire le Canal, on leur a pris quelque morceau de terre dont ils n'ont pas été dédommagés au double, ou au triple, selon qu'ils se l’étaient proposé. Il y a d'ailleurs des esprits bourrus qui vous diront la même chose, parce qu'ils sont accoutumés à désapprouver, et à décrier tout ce qui s'entreprend d'extraordinaire. Il s'en trouve même d'assez mal tournés, pour en parler mal, par l'envie et par la jalousie qu'ils ont contre le mérite et le bonheur du sieur de Riquet. Et enfin comme il y a peu de personnes dans cette Province qui soient versées en ces sortes de matières, et qui ayant l’intelligence de ces travaux, plusieurs n'en parlent que comme ils en entendent parler des autres; et parce qu'il y a toujours de mécontents, ces ouvrages ne manquent pas de trouver des contradicteurs.» Todo o mundo conhece as vantagens que a França tirou do Canal de Languedoc e sabe-se que, para vencer as contradições que aquela obra experimentou, foi necessário o génio de um Luís XIV e de um Colbert; e quando isto se observa na Itália e na França, nada admira que em Portugal aconteça outro tanto.

Com efeito, a tradição diz que a atual ponte de Coimbra é a terceira, tendo-se formado umas sobre outras; muita gente assevera que contara muitos degraus no Lugar do Cerieiro, aonde hoje nenhum existe, que vira passar barcos à vela por debaixo da ponte, etc. etc. Estêvão Cabral, nas «Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa», Tomo III, Cap. II, refuta esta opinião; entretanto não tratou a questão como ela merece e eu me limitarei somente a dizer o necessário para destruir a opinião geralmente seguida.

O Mondego, chegando por entre montanhas até logo abaixo de Coimbra, entra na grande bacia, aonde existem os seus Campos; não são precisos grandes conhecimentos geológicos ou miúdas observações para conhecer que aquela bacia foi originariamente mais profunda e até em grande parte inferior ao nível do mar. Neste estado primitivo, todas as areias e quase todos os nateiros acometidos das montanhas seriam depositados neste grande vale, por efeito da perda da velocidade das águas; vê-se pois que, nesta época, este vale se elevaria rapidamente, principalmente abaixo de Coimbra; vê-se mais que, ao passo que ele se elevasse sobre a superfície do mar, como as águas iam aumentando de velocidade pela diferença de nível, que esta elevação seria mais vagarosa, porque parte das matérias seriam acometidas mais para a vizinhança da foz, tendo de se espalhar por uma grande extensão do vale, e porque muitas delas seriam expelidas pela barra fora. Temos, pois, que a elevação irá diminuindo progressivamente; mas, por outro lado, vemos que, se o rio tivesse uma grande declividade, ele teria força para cortar os campos e profundar o seu álveo; existe, pois, um ponto intermédio, a que chamarei do equilíbrio, com o qual, estando nivelados os campos, se o rio anda à discrição, ou o álveo, se ele é obrigado a segui-lo, nem o rio levantará nem abaixará mais, tomando um termo médio sobre um número considerável de anos, para não serem sensíveis as desigualdades procedidas de causas extraordinárias. Temos a prova disto no Rio Borcodon, na Província do Alto Delfinado, perto de Embrum, o qual vai entrar no Durance: aquela torrente saindo da garganta das montanhas e entrando na planície se elevou 136 pés por efeito das matérias que depositou, tendo-se firmado desde 1604 sobre a crista deste aterro, com a queda como tem na parte superior – «Mémoires sur différentes questions de la Science des constructions publiques et économiques qui ont successivement remporté les pris des Académies, par Mr. Aubry», págs. 107 e 108. Sendo o que deixo referido de evidência matemática, resta saber o caso em que se acha o Mondego.

É sabido que já no ano de 1285 abandonaram as freiras de Santa Ana, por causa das inundações, o seu Convento situado pela parte de cima do Ó da Ponte, mudando-se para o sítio chamado a Várzea, e que o Convento de S. Francisco, que existia por debaixo do Ó da Ponte, que acabou a Senhora D. Constança Sanches, filha de El-Rei o Senhor D. Sancho I, e cuja igreja foi sagrada no ano de 1362, foi abandonado pelos religiosos, e pelo mesmo motivo, no dia 29 de novembro de 1609; igual sorte teve o Convento de Santa Clara velho no ano de 1677. O antigo Convento de S. Domingos, fundado no sítio chamado em outro tempo o Figueiral e hoje o Chão da Torre, e já habitado em 1227, foi abandonado pelos mesmos motivos e mudados os religiosos para o que hoje vemos, no ano de 1648; tanto a história como os monumentos, ainda hoje existentes, e a Planta da antiga Coimbra, que se encontra na obra intitulada «Galeria do Mundo», provam o que deixo referido.

São, pois, estes factos, e outros mais que se poderiam apontar, uma prova sem réplica de que, nos primeiros séculos da nossa Monarquia, ainda era muito considerável a elevação progressiva dos Campos de Coimbra. Para isto concorreu muito, sem dúvida, a arroteação das montanhas, cujas vertentes se dirigem ao Mondego; e esta causa, que produziu iguais efeitos em outros distritos da Europa, é igualmente referida pelo nosso Frei Luís de Sousa, no Livro III, Cap. IV [da “História de S. Domingos”].

As mesmas causas produziram o entulho da Ponte de Coimbra e, por este motivo, o Senhor Rei Dom Manuel mandou fazer de novo parte da Ponte, como se vê da Inscrição, que se acha sobre a sua porta, que diz assim: «O Sereníssimo Príncipe alto e mui poderoso Rei D. Emanuel nosso Senhor o primeiro deste nome e catorze na dignidade real mandou fazer de novo esta Ponte até às Esperas, e reedificar até à Cruz de S. Francisco, e da dita Cruz até Santa Clara de novo, e acrescentar esta torre e muro, era de mil e D. e XIII anos.»

Estêvão Cabral, «Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa», Tomo III, pág. 218, não conheceu o lugar indicado pelas «Esperas», que se deve ler «Esferas», sendo as Armas do Senhor D. Manuel, que se acham sobre o 8.º arco da Ponte, contando de Coimbra, aonde termina a Ponte nova, e se veem perfeitamente descendo do rio, estando uma pela parte debaixo e outra pela parte de cima da Ponte. A Cruz de S. Francisco era por baixo do Ó da Ponte; e é de notar que do Ó para diante se não fez naquela época toda a Ponte como agora existe, mas tão-somente até aonde acabam as guardas de alvenaria, devendo então haver uma rampa que descesse para a Portaria do Convento velho de Santa Clara; porquanto, sendo a Ponte reedificada em 1513, como diz a Inscrição antecedente, se acha outra na Portaria de Santa Clara que deita para a Ponte, a qual diz que esta Porta fora construída em 1587; donde se conclui, que, achando-se esta Porta quase entulhada até ao meio, não podia naquele lugar existir a Ponte em 1513, como agora se acha, e me parece que aquele último acrescento foi feito muito posteriormente, e provavelmente quando fizeram a nova estrada do Almegue, que antigamente se dirigia pelas Ínsuas.

A falta de exatidão dos nossos historiadores muito tem concorrido para as falsas ideias, que se têm sobre este objeto, porquanto Frei Luís de Sousa, Livro III, Cap. IV, nos diz: «E acontecia pela muita abundância das areias, subir o rio a tanta altura com qualquer pequena enchente, que não só cobria os campos, e alagava o Convento, mas lançava por cima da Ponte. Donde nasceu que, temendo-se ficar brevemente vencida das areias, como já se ia sumindo nelas, tratou a Cidade de fazer com tempo outra, que é a que hoje vemos, e afirma-se que foi diretamente fundada sobre a antiga, de que não temos mais que a fama. E com a podermos chamar nova, vai fazendo já bom testemunho ao que dizemos. Porque acontece em alguns dos arcos terem estreita e trabalhosa passagem os mesmos barcos que poucos anos atrás passavam folgadamente à vela.» É notável que Frei Luís de Sousa, escrevendo sobre este assunto, nem visse a Inscrição do Senhor Rei D. Manuel acima referida, que ainda hoje vemos, nem reparasse que então se viam 7 dos antigos arcos, porque ainda hoje se observam, avançando que da antiga Ponte não temos mais que a fama!

Eis aqui, a meu ver, explicada a tradição das 3 Pontes sobre o Mondego, umas sobre as outras, que vem a ser: a primitiva Ponte, do tempo do Senhor D. Afonso Henriques, e para a qual o Senhor D. Sancho I deixou à Cidade de Coimbra em seu testamento dez mil maravedis; a reedificação de parte da Ponte no tempo do Senhor D. Manuel, como consta da Inscrição de 1513; e o pequeno acrescento, junto do Convento velho de Santa Clara, posterior a 1567; não seguindo, portanto, a mal fundada opinião de Frei Rafael de Jesus, «Monarquia Lusitana», Parte VII, Livro IV, Cap. IX.

Tenho provado que o álveo do Mondego tem levantado e com ele os seus Campos; mas certamente daqui se não conclui o que muitos asseveram, de ter conhecido gente que viram 50 degraus no Lugar do Cerieiro, por cima da Ponte, aonde hoje nenhum existe, porque um Procurador da Cidade empregou os últimos que restavam num caminho do Armado, aonde hoje se acham, e bem se conhecem, apesar de que o povo diz que foram submergidos pelo Mondego. Supúnhamos que aquela gente podia dar notícias do estado da Ponte há 150 anos, como era possível então que o Senhor D. Manuel conhecesse a necessidade de uma nova Ponte em 1513, quando ainda em 1672 se desciam 50 degraus no Lugar do Cerieiro, e se descobrem hoje antigos arcos, que ainda dão alguma expedição às águas!!!

Para mais destruir esta fábula geralmente acreditada, devo dizer que, no Cartório do Mondego, vi uns Autos originais, em que se lê, a fl. 50 verso: «Termo da Obra e reforma da Ponte: – Aos 20 dias do mês de novembro de 1708 anos, nesta Cidade de Coimbra, e no sítio da Ponte dela, aonde vieram os Desembargadores Juízes atrás nomeados e assinalados, e com eles os Mestres-de-Obras de Pedra e Cal, João Carvalho e José Cardoso, aos quais tinham eles Juízes muito tempo antes recomendado fizessem apontamentos para se saber a melhor forma em que se devia fazer os bordos da mesma Ponte; que se arruinaram com as enchentes do Rio do ano próximo, digo, deste corrente ano de 1708, atrás declarado, etc.»

«Termo por que se mandou fossem desentulhados das areias os arcos da Ponte: 16 de novembro de 1708: – E por eles Juízes foram vistos e examinados os arcos da dita Ponte, e que muitos deles estavam entulhados de areia, desde entre as Pontes para a banda da Cidade, e que era preciso desentulharem-se, fazendo em cada um deles uma vala pelo Rio abaixo, para que pudessem ter passagem as águas, e com o curso delas levar as areias. Resolveram uniformemente que logo se desentulhassem os ditos arcos e se fizessem as valas, e com efeito se fizeram, que de tudo porto fé, pelo ver e assistir da obra, de que mandaram fazer este termo e assinaram, etc.»

Não falemos dos princípios hidráulicos dos tais Juízes que mandam abrir valas na areia para desentulhar a Ponte, e por semelhantes motivos os negócios desta natureza têm ido em Portugal como se sabe; como é possível, porém, acreditar em algumas pessoas, que dizem passaram em outro tempo à vela num batel por debaixo da Ponte, quando em 1708 as guardas da Ponte atual foram demolidas por uma cheia, e já naquele tempo estavam entulhados os arcos baixos, que ainda se descobrem, e já Frei Luís de Sousa, como deixo transcrito, dizia na sua «Crónica», estampada em 1622, que os barcos à vela não podiam passar?

Ainda nos mesmos Autos, a fl. 19, se lê o Parecer do Capitão Manuel de Miranda da Silva sobre o encanamento do Mondego, que começa: «Já por muitas e exatas informações havendo constado a S. Majestade o grave detrimento que padece a Cidade de Coimbra nas inundações do rio Mondego, a grande ruína que está iminente a Ponte, a altura a que têm subido as areias, que deixa o rio nas ocasiões que enche; e como estas têm levantado o álveo de sorte que já as águas não acham fuga pela maior parte dos arcos da Ponte, pelo haverem empachado as areias, as quais, juntas em cabeças, fazem grande embaraço à corrente e navegação, etc.»

Do que deixo referido se conclui, pois, que o álveo do Mondego levantou consideravelmente desde o princípio da nossa Monarquia, ou porque a altura do seu álveo naquela época estava ainda distante do ponto do equilíbrio, de que acima falei, ou porque este ponto se elevou mais por efeito da arroteação das montanhas; reduz-se, pois, a questão a saber se o álveo é chegado a este ponto.

A consideração de que em 1708 uma cheia destruiu as guardas da Ponte, e portanto passou por cima delas; que em 1788 e 1804 produziu o mesmo fenómeno; e que a de 24 de dezembro de 1821 somente excedeu a de 1788, a maior de todas as conhecidas, em 24 palmos, me faz crer que o álveo do Mondego chegou, ou está muito próximo, do ponto do equilíbrio; muito mais se atendermos de que nada admira que a cheia de 24 de dezembro de 1821 excedesse a maior das conhecidas em 24 palmos, porque nenhuma outra produziu rio acima tantos estragos nas suas margens, ou sejam, do Mondego, do Alva ou do Dão; donde se vê que este excesso foi efeito de espantosas chuvas que caíram na Beira, e não da elevação do álveo.

Partindo destes princípios, e de outros factos que pudera apontar, tenho muita satisfação em ser talvez o único que, em 1814, no princípio das atuais obras, avançou a proposição de que o álveo do Mondego estava muito próximo do ponto do equilíbrio, e que as diferenças, quase insensíveis, que apenas seriam suscetíveis de ser observadas, podiam ser destruídas pelo seu encanamento. Com efeito, para provar pela experiência o que a razão me ditava, mandei fundar na Volta das Mós, abaixo de Coimbra, no ano de 1815, um Munda-metro, ou uma régua graduada de cantaria, que marcasse as mais pequenas variações do álveo; mandei igualmente fazer uma ranhura na cantaria do 1.º arco da Ponte, próxima da Portagem; e, contando em ambos os casos de cima para baixo, resulta das observações feitas no mais rigoroso estio, marcando por conseguinte o ponto mais baixo da superfície da água em cada um dos anos, o que consta da relação seguinte:

Ano de 1814: maior abatimento das águas, a 19 de Agosto; altura da ranhura na água no 1.º arco da Ponte: 5.1 de palmos.

Ano de 1815: graduação pelo Munda-metro: 17,3 de palmos.

Ano de 1816: maior abatimento das águas, a 16 de agosto; graduação pelo Munda-metro: 17,6 de palmos; altura da ranhura na água no 1.º arco: 5,4 de palmos.

Ano de 1817: maior abatimento das águas, a 25 de agosto; graduação pelo Munda-metro: 17,9 de palmos; altura da ranhura na água no 1.º arco: 4,8 de palmos.

Ano de 1818: maior abatimento das águas, a 9 de agosto; graduação pelo Munda-metro: 18,8 de palmos; altura da ranhura na água no 1.º arco: 4,7 de palmos.

Ano de 1819: maior abatimento das águas, a 16 de agosto; graduação pelo Munda-metro: 17,6 de palmos; altura da ranhura na água no 1.º arco: 5,1 de palmos.

Ano de 1820: maior abatimento das águas, a 7 de agosto; graduação pelo Munda-metro: 17,7 de palmos.

Ano de 1821: maior abatimento das águas, a 27 de agosto; graduação pelo Munda-metro: 18 de palmos; altura da ranhura nas águas no 1.º arco: 5,3 de palmos.

Daqui resulta que o Mondego não tem levantado o seu álveo junto da Ponte e que o tem abatido junto do Munda-metro; as pequenas variações que se observam de uns anos para outros, na relação acimam, tem causas que as produzem, que é escusado agora referi-las.

Geralmente falando, os rios nesta última época não levantam nem abaixam o seu leito, esta é a opinião de Creulx, que confirma com vários exemplos. – «Recherches sur la formation des Rivières, etc.», pág. 22-35; e as variações que se experimentam são ordinariamente o resultado dos trabalhos do homem; veja-se, por exemplo, o que diz Micheleti, «Ensaio hidrográfico do Piemonte», pág. 31 e 32. E quando o Mondego não tivesse chegado ao ponto do equilíbrio antes de 1814, se poderia conseguir, se conviesse, estreitando e encurtando o seu álveo, que ele ou o conserve na mesma altura, ou ainda profunde, atentas as suas circunstâncias. O Pó e a Dura Riparia têm profundado por tais motivos. – Micheleti, id, pág. 37; veja-se Fabre, «Ensaio sobre as Torrentes e Rios, etc.», Secção III.

Estabelecidos estes princípios, e não podendo haver receio do progressivo levantamento do álveo do Mondego, como geralmente se supunha, foram delineadas as outras obras, de maneira que delas se pudesse tirar o maior número de vantagens, que fosse possível. Nisto segui o preceito de D. Benedetto Castelli: «E primo dico che reputo totalmente impossibile fare operazione nessuna, per utile che sea, che non porte suo ancora qualche damno, e pero debesse utilmente bilancare l'utile ed il damno, e poi abbraciare il non damnoso partito.»

Entre as muitas considerações que o Engenheiro Hidráulico deve fazer quando trata de encanar um rio da natureza do Mondego, são as mais importantes as seguintes:

1.° Deve o rio seguir o mesmo álveo?

2.º Qual convirá mais: que ele inunde os Campos ou que ele seja contido entre marachões?

3.º Qual deve ser a largura do álveo proporcionada para uma ou outra hipótese?

4.º Quais devem ser as dimensões dos marachões e sua construção, atendendo às forças a que tem de resistir e aos diferentes materiais que com maior economia pode empregar segundo as localidades?

5.º No caso de o rio dever inundar os Campos, deverão as suas margens dar passagem à água por um limitado espaço?

6.º Poderão estas obras fazer refluir as águas de maneira que promovam a inundação de alguma povoação importante, o que se deve evitar?

7.º Será possível estabelecer um sirgadouro, que ao mesmo tempo sirva de estrada para as diferentes povoações, e proporcionar outros meios que facilitem a navegação?

8.º Os Campos areados poderão ser aproveitados?

Eis aqui os principais objetos que se tiveram em vista nas atuais obras do Mondego e, por isso, tratarei de cada um deles em particular, respondendo a cada um dos quesitos pela mesma ordem com que ficam referidos.

1.º O álveo do Mondego, que antes de 1791, saindo de entre as montanhas nas vizinhanças de Coimbra, seguia a mesma direção, encaminhando-se ao norte, e, chegando ao Monte da Jaria, mudava para a direção de sudoeste, até ir encontrar os montes opostos de Arzila, dando depois a volta de Pereira, seguindo a volta da Granja e, mudando novamente de direção junto de Montemor-o-Velho, para ir tocar nos montes opostos de Almiara, seguia desta maneira um curso muito tortuoso, que era necessário evitar. Estêvão Cabral conheceu a necessidade de encurtar o álveo, evitando tão consideráveis voltas, que estorvavam demasiadamente a navegação; conheceu também que, encurtando o álveo, aumentava a queda do rio, e desta maneira concorria para que o rio arrojasse com mais facilidade as areias para a sua foz; encostou, portanto, o Mondego aos montes ao sul do Campo, logo abaixo de Coimbra; e, tendo toda a liberdade para lhe determinar o álveo que melhor conviesse, desgraçadamente se não lembrou que uma grande parte do Campo pertence aos lavradores do sul e que estes haviam de experimentar com a passagem do rio grandes embaraços na criação dos seus gados e principalmente no tempo das colheitas.

Nas circunstâncias em que ele se achou, devia conduzir o rio pelo meio do Campo até Montemor, obrigando-o a dar uma doce volta, que podia construir de maneira que, quem navegasse dentro dele, lhe parecesse que ia sempre em linha reta, com pouca diferença. Desta maneira, além de preencher os seus fins, satisfazendo às indicações acima referidas, se conseguia maior facilidade para a igual inundação dos Campos, evitava-se o grande cúmulo de águas que atualmente é necessário derivar para o norte, e a dificuldade de inundar convenientemente os Campos do sul, que ora são muito estreitos, ora se tornam consideravelmente largos.

Neste estado de coisas, achando-se o Campo de Coimbra infrutífero na maior parte do antigo álveo, nas muitas e consideráveis vages, efeitos do desmazelo e ignorância, ocupado com um novo álveo, o qual, ainda que não o melhor, era contudo muito mais vantajoso que o antigo, era forçoso aproveitar o novo álveo, por não cortar mais o Campo, já suficientemente arruinado.

2.º É geralmente sabido que os Campos do Mondego devem a sua fertilidade às contínuas inundações e que nenhumas povoações existem dentro dos Campos, à exceção do lugar da Ereira, que não pode ser inundado, por se achar situado numa pequena elevação; vê-se, pois, a conveniência que há em que as inundações entrem nos Campos para os fertilizarem com os seus nateiros, evitando-se, contudo, quanto seja possível, que as águas cortem os campos frutíferos e que levem areias sobre eles.

Por outra parte, se o Mondego fosse marachoado, de maneira que os Campos não fossem inundados, daqui se seguiriam graves prejuízos: 1.º Seria preciso uma grande largura do álveo, que roubaria considerável porção de terreno frutífero. 2.º Dificultaria a navegação, quando não houvesse enchentes, pela ramificação das suas águas, pelo álveo, como acontece no Loire, e seria trabalhosa a navegação com um grande volume de águas. 3.º Seriam necessárias grandes dimensões nos marachões e uma enorme despesa para a sua construção. 4.º A grande massa de terras para a sua construção seria tirada dos Campos, com prejuízo destes. 5.º Se, por um incidente, quebrassem os marachões em ocasião de alguma cheia, os prejuízos seriam enormes, como aconteceu no Loire nos anos 1710, 1733, 1744 e 1755, apesar das obras gigantescas que ali se têm construído. – Creulx, «Recherches sur la formation des Riviéres, etc.», pág. 105, 107, 192 e 216. 6.º As vages feitas por estes acidentes se não poderiam tornar frutíferas, visto que, reformados os marachões, não entravam novos nateiros nos Campos. 7.º Coimbra seria fortemente inundada na ocasião das cheias.

É certo que os Campos não inundados têm a vantagem de proporcionar duas sementeiras cada ano, muito mais se se estabelecem canais de rega; porém, estes mesmos, num rio como o Mondego, prejudicam a navegação, pela derivação das suas águas fora do álveo; e, prescindindo mesmo de não estarem os povos daquele distrito acostumados a esta espécie de cultura, os inconvenientes expostos são tão consideráveis que é fácil de ver a necessidade que há de inundar os Campos com as enchentes do Mondego, não estando portanto este rio no caso do Loire, Reno e outros semelhantes.

3.º O álveo do Mondego, antes de 1791, tinha 865 palmos de largura, depois que passava o sítio do Almegue, a qual foi determinada pela vistoria a que se procedeu no ano de 1708, largura demasiada, que estorvava a navegação e facilitava o entupimento do álveo. Estêvão Cabral, com muito acerto, lhe deu a largura de 300 palmos, quase constantemente, havendo pequenas diferenças em algumas situações, e esta é a que lhe convém, porque as águas do Mondego cobrem quase sempre as areias do álveo, à exceção dos meses do estio, depois que nas partes superiores do rio começam a tirar águas para as regas. Por outra parte, esta largura do álveo é suficiente para conter as águas claras do inverno, que é necessário desviar dos Campos. Devo, contudo, dizer que, nas vizinhanças de S. Martinho, lhe deu somente a largura de 250 palmos numa pequena extensão, não se tirando utilidade alguma desta variação, antes prejuízo.

4.º Sendo o Mondego, na distância de 5200 palmos da Ponte de Coimbra, forçado a seguir a direção do novo álveo; encostando-se aos montes do sul do Campo, e deixando na sua direita toda a largura do Campo de Coimbra, Campo assaz vasto; a cuja superfície acresce a do Campo do Bolão, a do Paul de S. Fagundo, bem se deixa ver quanto dificultoso seria empreender uma obra estável, que facilitasse a passagem das águas por cima deles, sem ser destruída nas ocasiões das inundações; que, em verdade, são algumas vezes tão consideráveis que causam espanto e admiração, como ainda no ano antecedente por vezes se experimentou, principalmente na cheia de 24 de dezembro. Para resolver convenientemente este problema, tive em vista: 1.º que os marachões deviam ter altura tal que ao dado álveo contivessem as águas ordinárias do inverno, que são claras, e as quais, sendo necessárias para a navegação, prejudicam por outra parte a cultura dos Campos, resfriando-os e alagando-os; arrojam sobre eles areias, não depositam nateiros, antes pelo contrário, muitas vezes levam as boas terras. 2.º Proporcionar as obras a darem fácil passagem às águas na ocasião das cheias, procurando evitar, quanto fosse possível, uma forte veia de água, que sempre leva consigo muitas areias, ainda mesmo quando os marachões tenham uma altura considerável. 3.º Não fazer esta derivação das águas por uma tão longa extensão rio abaixo, que desta maneira se não pudessem alagar ordinariamente os Campos de Bolão e seus vizinhos.

Debaixo destes princípios se construíram as atuais obras, dando passagem às águas por cima dos marachões; desde o princípio da Volta das Mós até o Porto de Montesão, por um espaço de 12000 palmos, proximamente. A este marachão se lhe deu uma inclinação ao horizonte um pouco maior do que a que tem o álveo do Mondego, com o fim de começar a derivação das águas pela parte inferior, junto de Montesão, de maneira que nas meias cheias, quando já sai para o Campo uma considerável porção de água na parte inferior, apenas começa a sair na parte superior. Desta sorte, devendo-se ter em vista o evitar quanto seja possível os estragos de uma cheia real, por serem as mais ruinosas, bem se deixa ver que, com uma tal construção, se procura que a água se derive com igualdade no máximo das cheias reais por todo aquele espaço de 12000 palmos, evitando-se deste modo, quanto é possível, que uma massa considerável de areias salte os marachões, que se formem vages e aterros, introduzindo no Campo a falta de nivelamento, que tão prejudicial lhe tem sido.

Uma semelhante construção não pode evitar que, no máximo das cheias, salte alguma areia para o interior dos Campos, porque não está ao alcance do homem fazer impossíveis, mas, atentas as circunstâncias ponderadas do Mondego, parece fora de dúvida que esta é a maneira mais vantajosa de construir os marachões, e dela resulta que a areia levada por cima deles é ordinariamente muito fina, que pouco prejuízo faz nos campos, e será menor este inconveniente quando estiverem mais aumentados os arvoredos, que se vão plantando na antiga vage, que fica por detrás dos marachões, os quais se devem nela continuar, bem como no antigo álveo. O mesmo inconveniente diminuirá quando os lavradores do Campo de Coimbra se lembrarem que a conservação e melhoramento dos seus Campos depende do seu nivelamento, que devem procurar obter; sendo para lamentar que, ou os deixam inteiramente em abandono, ou, quando fazem algumas obras, o que raras vezes acontece, são ordinariamente mal construídas, não conseguindo muitas vezes o fim a que se propõe, e causando em muitas ocasiões prejuízos aos seus próprios Campos e aos dos seus vizinhos.

A localidade desta importante obra lhe deu a vantagem de se fazer com uma módica despesa, atenta a sua grandeza, pela facilidade de se obterem estacas de pinheiro, e por haver na sua vizinhança uma excelente pedreira, donde se têm extraído muitos milhares de carros de pedra, já para defender com pedras perdidas, lançadas no álveo, as bermas dos marachões, já para formar a estrada à borda do rio, que serve também de sirgadouro, e já para formar os pedrados por detrás deles, que sustentam a pancada da água, quando esta se precipita dos marachões sobre a vage, os quais são construídos em degraus para sua maior estabilidade. Os mesmos marachões são divididos por tralhas em pedradas, na Volta das Mós, para evitar que a água se acumule mais num ponto do que noutros; e as suas dimensões e fortaleza na construção vão diminuindo rio abaixo, ao passo que é mais pequena a força a que se deve resistir. Os marachões, no espaço dos ditos 12000 palmos, são povoados de arvoredos, exceto no lugar da estrada que serve de sirgadouro.

5.° Pelo que fica dito, se viu a necessidade de terminar no Porto de Montesão a derivação das águas para o norte, outro tanto acontece para o lado do sul, aonde, não havendo vages e sendo os campos muito mais estreitos, não se encontram tão grandes dificuldades. De Montesão para baixo, segue o Mondego marachoado de um e outro lado, com marachões de terra até o Campo do Ameal, aonde atualmente chegam as obras, a légua e meia distantes de Coimbra, aos quais se deu altura tal que nenhuma enchente os pudesse montar, porque de outra maneira seria inevitável a sua ruína. Nas suas dimensões em largura, que ordinariamente não excedem 14 palmos na base e 7 no andadeiro, dependendo aquela da altura do Campo no sítio em que eles assentam, se tem tido em vista ocupar o menor terreno possível em benefício dos proprietários desta parte do Campo e poder conseguir uma obra mais extensa com os poucos meios que oferece o Cofre do Mondego; mas daqui se deixa ver quanto é necessária uma contínua vigilância, para que eles não sejam destruídos, o que traria consigo prejuízos consideráveis, muito principalmente enquanto se não tomarem novas providências relativas aos gados, que pastam no Campo sem guardas, que concorrem muito poderosamente para a sua ruína.

6.º Tendo o Mondego, na distância de 6000 palmos, desde a Ponte até à proximidade do Porto das Mós, 5 palmos de queda, segundo o nivelamento que fez em 5 de julho de 1815, e não tendo os marachões acomodados para a derivação das águas mais altura que 6 até 8 palmos sobre as águas do verão, podendo as águas derivar-se por uma extensão de marachões de 12000 palmos, além da grande quantidade que sai pelas Ínsuas para fora do álveo, antes de chegar à Volta das Mós, é bem claro que as atuais obras não podem produzir a inundação da Cidade; o contrário, porém, aconteceria se as águas todas do Mondego fossem contidas entre marachões, porque então seriam inevitáveis grandes ruínas na Cidade baixa.

7.º Para maior facilidade da navegação, objeto do norte de sirgadouro, para o que se decotaram os arvoredos na margem do rio em altura tal que não estorvem a sirga; desta maneira, além da vantagem de levar o Mondego reunidas as suas águas, ordinariamente assaz diminutas, excetuando o tempo das cheias, como fica dito, melhor podem os barcos velejar pelo decote dos arvoredos, e na falta de vento lhe ministra o sirgadouro considerável vantagem, numa grande parte do ano. Além disto, o sirgadouro serve de uma excelente estrada de comunicação de Coimbra com Montemor e mais povoações que cercam os Campos.

8.º Tem-se começado igualmente a aproveitar os areais em frente de Montesão e S. Martinho, por meio de tralhas, que se têm construído, e de muitos milhares de salgueiros e choupos, que se têm plantado. Nestes lugares se encontram já algumas jeiras de boa terra, aonde tudo era pura areia, 3 e 4 anos antes da atual época, e estes novos bosques, podendo ser de grande utilidade para o futuro, ministram já muito grande quantidade de novas plantas para a sua continuação e imensidade de faxinas para o progresso e reparos das obras. Muitos outros campos areados, aonde as águas correm com menos velocidade, têm melhorado espontaneamente e os Campos baixos têm experimentado um benefício extraordinário.

Concluindo este escrito, não posso deixar de ter a maior satisfação em anunciar que as obras do Mondego resistiram às terríveis inundações de dezembro passado, sem quebrarem os marachões em parte alguma, tanto do norte como do sul; os campos todos, ao abrigo dos marachões de terra, que são os mais extensos e importantes, experimentaram grandes benefícios e ainda que alguns, em frente da Volta das Mós, aonde se dá saída às águas do Mondego, foram areadas por efeito de tão espantosas cheias e vizinhanças da grande vage e antigo álveo, o que se não pôde evitar absolutamente em tal caso e nas atuais circunstâncias, como fica dito, contudo é bem claro que, se não existissem os marachões da Volta das Mós e caísse em cima dos Campos todo o peso de água do Mondego, como antigamente, seria o prejuízo por extremo maior; tendo, aliás, estes mesmos campos melhorado por efeito das obras nos anos anteriores, em que não houve cheias tão consideráveis, sendo a de 24 de dezembro passado a maior de que há notícia nos Campos do Mondego.

Lisboa, 15 de abril de 1822.

O Encarregado da Direção das Obras Hidráulicas do Rio Mondego,

Doutor Agostinho José Pinto de Almeida."

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“BIOGRAFIA DO EXCELENTÍSSIMO SENHOR AGOSTINHO JOSÉ PINTO DE ALMEIDA, do Conselho de S. M. F., Comendador na Ordem de Cristo, Cavaleiro da Real Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Lente de Prima, Decano e Diretor da Faculdade de Matemática na Universidade de Coimbra, Vogal do Conselho Superior de Instrução Pública, etc., etc.,etc.", por JOSÉ MARIA DE ABREU (Coimbra, Tipografia do Observador, 1848). 

Mário Torres