O MANDARIM

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Leio, numa publicação de Rui Pato, que o café Mandarim vai fechar de vez. Lamenta o nosso amigo o risco em que fica o belo painel e azulejo de Vasco Berardo, preocupação que partilho, como é óbvio.

Não admira, porém, a estranheza que este lamento, o do desaparecimento do Mandarim, provoca em alguns os nossos amigos mais jovens ou aqueles que, residentes noutras paragens, não tiveram a experiência do convívio – não raro conspirativo – naquele lugar. Notem que não há aqui nenhuma nostalgia por tempos passados. Ah, os bons tempos, dirão alguns. De facto, os tempos não eram bons, eram péssimos. A saudade que temos não é do tempo, é de nós. Nós naquele tempo, o tempo “do esplendor na relva/ da glória na flor”. E o que ele tem de melhor é a inspiração projetada no futuro que ainda nos alimenta, o que nele houve que faz de nós o que somos.

O Mandarim era um desses lugares de encontro que durou enquanto o que tinha de durar. Na verdade, ele já tinha morrido há muito, em renovações desajustadas, na transformação em MacDonald e, depois, noutras coisas que o deixavam distante o lugar de convívio e troca e ideias e projectos, uma das sedes informais das lutas académicas de 1969.

Lembramo-nos, os que viveram esses eventos, não é? A polícia de choque a partir os vidros do café – enfrentada pelo senhor Antunes de vassoura na mão, num alarde e optimismo delirante, pois do outro lado estava um pelotão de polícia de choque armada de “mausers”.

A primeira vez que entrei no Mandarim, por meados dos anos 60, encontrei logo o ambiente que se conservaria por muitos e bons. Havia o balcão de entrada e, no piso inferior pontificava a rapaziada da Académica, ao tempo simples e despretensiosas estrelas – Artur Jorge, Toni, Rui Rodrigues, irmãos Campos, Manuel António e muitos outros nomes grandes da história de futebol português. Outro futebol, claro.

No andar superior, lá estava aquela selecta clientela de que logo fui percebendo o estilo e a qualidade, já que um cliente – o Rui, de quem vim a ser grande amigo -, de pé, recitava em alta voz “O Operário em Construção”, do Vinícius. Era um verdadeiro centro cultural, onde a palavra circulava livre, rica, corajosa. Quando dei por mim, sentia-me em casa. Tão em casa que, quando no sistema e amplificação do café se ouviu “doutor José Gabriel ao telefone” levantei-me e fui atender como já tinha visto muitos outros fazer. Ali era, também, a central telefónica dos clientes. Quanto ao tratamento de doutor já nem liguei. Em Coimbra, esse título era democraticamente distribuído a quem fosse compostinho e tivesse mais de dezassete anos.

É isto. Mas isto, este Mandarim, centro da Oposição Democrática, mesa redonda de cultura e liberdade mais ou menos clandestina, já tinha morrido há muito. Só restava o endereço. As pessoas de que falamos tinham partido para outros caminhos. A própria crise académica de 1969 desfez muitas das proximidades – físicas, intelectuais, políticas, afectivas – tecidas em lugares como aquele. Não pensamos, contudo, esse tempo com nostalgia, mas como semente de um futuro que, de muitos modos, se cumpriu.

José Gabriel