PALMAS NAS SERENATAS. O CURIOSO EVOLUIR DAS TRADIÇÕES

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Escrevo este post alguns dias depois de ter assistido pela internet à Serenata Monumental da Queima das Fitas de 2021 (adiada para Outubro). Uma vez mais pude ver aquele final em que, depois de se ouvirem os fados e as guitarradas em silêncio, se solta um F-R-A frenético que desencadeia uma erupção de capas, pastas e fitas no meio de palmas e gritos de júbilo, a lembrar um vulcão adormecido que entrou repentinamente em actividade. – Gostei!

 

No meu tempo de Coimbra (anos 60) era muito menos divertido. Depois de ouvida a serenata em religioso silêncio, havia, quando muito, uns foguetes… e estava feito. Nem palmas, nem fitas pelo ar, nem nada. Aliás, grelados e fitados tinham de levar as insígnias recolhidas dentro da pasta, uma vez que o “Decreto da Queima” anunciava que “a praxe só terminaria” horas depois, quando o Cabrão tocasse às sete da manhã. A minha Mulher ainda se lembra de ter sido ameaçada de levar nas unhas porque, como tinha um medo danado das canas dos foguetes, pôs a pasta na cabeça, a pasta abriu-se e as fitas ficaram à mostra. Como os tempos mudaram!…

 

Outra alteração significativa tem a ver com o bater palmas no final de cada fado ou guitarrada, no contexto de um espectáculo. Hoje isso é considerado normal e desejável por muita gente. Porém, na Coimbra dos anos 60 não era assim; palmas e serenatas eram líquidos totalmente imiscíveis, fossem quais fossem as circunstâncias.

 

Nas digressões que fiz com o Coro Misto e o Orfeon, recordo-me de que, durante os fados e guitarradas com que sempre acabavam os espectáculos, se alguém na plateia batesse palmas, logo a malta (que, depois de cantar, se tinha dispersado pelas cochias) começava a tossicar ou pigarrear – então a única forma de aplaudir – sussurrando também discretos “chiiiius”, dando indicação, a quem batia palmas, de que estas não eram bem-vindas ou, pelo menos, que não cabiam ali.

 

Tenho também na memória uma situação bizarra, que hoje seria impensável. Já a trabalhar em Lisboa, pelos anos 70 ou 80, fui a uma casa de fados, com um grupo de antigos colegas de Coimbra, onde, a determinada altura, se cantaram fados de Coimbra. Já me não recordo de quem cantava, talvez fosse o Machado Soares. Mas lembro-me bem do espanto da assistência ao reparar que o nosso grupo se mantinha mudo e quedo no final de cada fado. Que bárbaros, terão pensado!

 

O curioso, porém, é que este ortodoxismo da Coimbra dos anos 60 – “ao fado de Coimbra não se batem palmas”, sejam quais forem as circunstâncias – era uma tradição pouco antiga, que teve origem num facto absolutamente fortuito que me foi contado pelo saudoso cantor de fados Augusto Camacho Vieira, com quem criei uma grata amizade, apesar de só tardiamente nos termos conhecido.

 

A conversa começou no “Coimbra Taberna”, infelizmente também já de saudosa memória, durante uma sessão de fados de Coimbra que, alegremente, íamos aplaudindo um a um e onde eu lhe fiz notar que, no meu tempo, a tradição não era essa. Ao que ele me respondeu que, involuntariamente, tinha as suas culpas no cartório no tocante a tal tradição. E, a seguir, contou-me uma história curiosa, a que voltaria num longo almoço que com ele tive, em Abril de 2014, no Restaurante da Ordem dos Engenheiros.

 

Nesse almoço falámos do filme Capas Negras, sobre o qual eu andava a escrever um post, e sobre as tradições académicas no seu tempo. Quando chegámos às serenatas, de rua (as serenatas às raparigas) e das outras (as serenatas-espectáculo), eu voltei à carga, querendo saber se havia palmas. Reproduzo a sua resposta: «Na rua não, mas na Sé Velha sim. Só deixou de haver palmas na primeira Serenata de Coimbra com transmissão directa da Sé Velha, pela Emissora Nacional, através do Emissor Regional de Coimbra, em Dezembro de 1946. Eu cheguei-me à frente e mandei tapar um lampião com uma capa, só se via a luz da lua; e então pedi à malta que não batessem palmas para que parecesse mesmo uma serenata para quem estava a ouvir pela radiodifusão.»

 

E assim nasceu uma tradição! Como à primeira serenata radiodifundida outra se lhe seguiu – logo em Janeiro de 1947 [1] [2], também a partir da Sé Velha – e outras mais sobrevieram, mensalmente radiodifundidas de outros locais ao relento [3], tais como o Campo de Santa Cruz, o Jardim da Sereia e as Patelas / Ladeira da Conchada [2], fácil é admitir que a nova moda rapidamente tenha pegado.

 

“Todo o mundo é composto de mudança”… e as tradições também. Desde que estejam vivas, ou melhor, desde que sejam vividas, dificilmente se mantêm imutáveis. Umas vezes vão-se alterando de forma lógica, adaptando-se ao evoluir dos tempos. Outras vezes transformam-se de forma disruptiva, não raro por circunstâncias inesperadas, como acabámos de ver.

 

Zé Veloso

02-11-2021

Em Penedo d@ Saudade

 

PS 1: O Augusto Camacho contou-me que na primeira serenata radiodifundida pela Emissora Nacional cantou também Jorge Gouveia e foram acompanhados por Carvalho Homem e Gabriel de Castro (1.ª e 2ª guitarras) e por Tavares de Melo e Aurélio Reis (violas). Camacho cantou "A água da fonte" e o "Fado das Águias". Jorge Gouveia cantou “Minho encantador” e outro fado de que não se recordava já.

 

Quanto ao “Fado das Águias”, sublinhou o Camacho que a primeira quadra é de Camilo Castelo Branco e que a segunda foi feita propositadamente para essa serenata por Fernando Quintela, poeta da sua República (Palácio da Loucura), a quem a pediu por ser um fado que tinha ouvido cantar lá na República apenas com a primeira quadra.

 

PS 2: Para falar das emissões radiofónicas da E.N., nada melhor do que o Coronel José Anjos de Carvalho, possuidor de um conhecimento enciclopédico sobre a temática da Canção de Coimbra, que, naquela altura, ainda era rapaz e estudava no Liceu de Évora. Contou-me que as serenatas eram transmitidas em directo às 11 horas da noite de domingo e repetidas na sexta-feira seguinte, antes do fecho da emissão da E.N., que acontecia às 14 horas. Ele e um seu colega ouviam-nas sempre e, enquanto ele apontava as letras dos fados, o seu amigo tirava os tons das músicas. Como curiosidade, a E.N. fechava todos os dias às 14 horas e só reabria por volta das 18:30, com música de dança a partir do Café Chave D’Ouro, no Rossio.

 

PS 3: O essencial da conversa que tive com Augusto Camacho Vieira vem confirmado num seu depoimento de 2005 no blogue Guitarra de Coimbra.

 

Nesse depoimento existe outra passagem em que Camacho se refere a aplausos em serenatas-espectáculo do seu tempo de estudante, mas, agora, aplausos numa serenata de salão: «Recordo dessa altura os futricas Fernando Rodrigues, tocador de viola, e seu irmão Flávio Rodrigues. Ouvia-os pela noite dentro e certa vez fomos ao Penedo e hoje ainda sinto a arte genial do Flávio, que me arrebatou a acompanhar-me no "Fado das Águias" assim como num sarau no Casino da Figueira em que me acompanhando com uma corda prima estalada no momento, talvez pela temperatura ambiente, fomos freneticamente aplaudidos». Sabendo-se a identidade que existia nessa altura entre as elites sociais e culturais de Coimbra e da Figueira da Foz (a Figueira era conhecida por "Coimbra-C"), não é difícil imaginar qual seria a praxis então seguida em Coimbra no que toca aos aplausos naquelas serenatas.

 

PS 4: Para afastar quaisquer dúvidas que possam ficar de uma leitura mais apressada, este post não se refere a aplausos nas serenatas de rua feitas às raparigas (as também designadas serenatas de cortejamento ou serenatas de galanteio) as quais se destinavam quase sempre às colegas e namoradas, quer dos cantores ou tocadores, quer de outros estudantes que, não tendo predicados musicais para tal, tinham de "encomendar" a serenata a quem soubesse fazê-la.

 

PS 5: Agradeço a dois amigos: ao Coronel José Anjos de Carvalho, por me ter aturado durante a preparação deste post; e ao Dr. Arménio Marques dos Santos, cantor de fados de Coimbra, a quem pedi que me revisse o texto e procurasse confirmar algumas informações.

 

Foto obtida do livro: ÍNÁCIO, Manuel Fernando Marques. O Canto e a Música de Coimbra – Fotobiografia de Augusto Camacho Vieira. Edições MinervaCoimbra, Coimbra, s. d.

 

[1]   CORREIA, Avelino Rodrigues. Do Choupal até à Lapa. Etnografia do Constructo da Canção de Coimbra. Tese de Doutoramento, Março 2014.

[2]   SOARES, António José; NUNES, António M. «Canções e Guitarras nas Décadas de 1930-1940», in Guitarra de Coimbra (Parte I), 2006,

http://guitarradecoimbra.blogspot.com/2006/12/canes-e-guitarradas-nas-dcadas-de-1930.

[3]   Posteriormente, as serenatas radiodifundidas passaram a ser gravadas em estúdio.