Um amargo peregrinar
Ainda a propósito do que vai acontecendo em redor da Igreja de Santa Cruz, guardei para hoje esta estória, que igualmente se desenrola à sua sombra e cujo relato traduz a realidade nua e crua da vida dos seus protagonistas, aos quais já em tempos me referi, ainda que de uma forma breve. Os dados de que entretanto disponho permitem-me uma nova abordagem que agora aqui partilho, deixando a pergunta: - Quantos nos interrogámos a respeito do músico de rua, que nos habituámos a ver tocar órgão junto desta igreja, e quantas vezes, ao olhá-lo, procurámos saber como nos chegam aqueles sons?! Falo concretamente do Luís, com tão amargo peregrinar! Nasceu em Coimbra há 44 anos e, aos 4, foi internado no Instituto de Cegos do Loreto, portador de uma cegueira progressiva. Ali viveu até aos 16, onde aprendeu Braille, música e outras matérias ligadas ao ensino especial, passando depois pela escola secundária D. Dinis. Entretanto, na ACAP - Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal, fez formação na área da administração operacional, telefonista, informática e inglês. A sua verdadeira vocação, porém, era outra, e daí ter aprendido e começado a tocar órgão em festas e arraiais. Aos 27, sofre um acidente ao cair de um terceiro andar, sendo-lhe amputado o braço esquerdo nos HUC. Daqui foi para a Cáritas em convalescença, onde existia um órgão, no qual começou a exercitar a utilização só da mão direita para meter a música - como se diz -, enquanto substituía a mão esquerda pelo nariz, cada vez que era necessário premir as teclas para fazer os acordes. Segundo ele, estava salvo e já podia trabalhar, apesar de totalmente curvado em cima do instrumento e cantando ao mesmo tempo, como ainda hoje se pode observar. Recorreu a ajudas para comprar o órgão electrónico que agora possui, tendo encontrado, nos degraus da referida Igreja, o espaço adequado para prosseguir a sua actividade, já lá vão dez anos. Vive na Zouparria do Monte com a companheira, que o traz e leva diariamente no autocarro e lhe vai buscar o instrumento que sempre fica arrecadado. A sobrevivência de ambos depende da pensão de invalidez dele, no valor de 370 euros, dos quais paga 150 euros de renda de casa, viagens, alimentação, água e luz, enquanto a companheira recebe 186 euros da assistência social. Há ainda outra personagem junto dele, que desempenha o papel do antigo “moço dos cegos”, com quem partilha uma ou outra “retirada” para molharem a palavra numa daquelas tabernas ainda com o ramo de loureiro. Antes, porém, o Luís conta e identifica as moedas pelo tacto, e volta a poisar o boné no chão. E lá segue, com o braço do companheiro por cima, por causa do desequilíbrio. – Às vezes, é preciso beber um copo para ajudar a esquecer as mágoas, então não é, questiona-me! - E ter alegria, repostei eu! Mas ele foi mais longe: - Alegria era eu poder “ver” o meu filho, o Diogo André, hoje com 18 anos e que sempre trago no coração. Desde menino que nunca mais soube dele, apenas que vive no Casal Novo, em Ourém. Pode ser que a Rainha Santa se lembre de mim!
António Castelo Branco
Imagem retirada da net