NADA DE NOVO

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“Tirando na vitória da Taça de Portugal, nunca vi a Académica ser tão falada”. Esta foi apenas uma das dezenas de reações que todos tivemos a oportunidade de ler – e com a qual muitos de nós certamente se identificarão - ao longo das passadas semanas, depois do anúncio da matemática despromoção da Académica OAF para o terceiro escalão do Futebol português.

Falaram comentadores de televisão, falaram históricos do clube, falaram políticos, e até Sérgio Conceição veio dar uma palavra de apoio moral relativa ao acontecimento. Em comum, alguma surpresa pelo sucedido, uma nostalgia da Académica de outrora e o famoso clichê de a Briosa pertencer a lugares melhores do que aqueles que habita, e habitará nos próximos anos.

Na ressaca do jogo que ditou a descida matemática à Liga 3, não raros terão sido os academistas a quem algum familiar menos informado perguntou, com alguma estupefação “Então, a Académica? O que se passou?”. Confesso que estranhamente – ou talvez não – a resposta que mais sentido me ocorreu foi “Nada, não se passou rigorosamente nada.” Fez-me sentido porque, de facto, não houve um episódio que tenha sido especialmente marcante nos últimos dias, meses, e arrisco-me até a dizer anos, que tivessem culminado na despromoção da Briosa da Liga 2 para a Liga 3.

A única forma de não dar uma resposta curta e breve a esses bem intencionados curiosos - para quem a descida da Académica é tema de conversa como é um penalti mal assinalado no jogo do seu clube ou no do rival - é ter uma longa conversa sobre as várias camadas da autêntica cebola em que está transformado o clube, muitas vezes difíceis de identificar, separar ou distinguir. Mas para nós, sócios e amantes da Briosa, essa é a pergunta que impõe uma reflexão. A pergunta que não pode ter uma resposta rápida, e à qual todos somos obrigados a refletir profundamente antes de chegarmos à mesa de voto nas próximas eleições – sejam elas quando forem.

Essa análise é um exercício complicado, e confuso, por natureza.

Tentar nomear ou individualizar o(s) culpado(s) pelo estado em que o clube se encontra parece ser uma tentação demasiado perigosa. Não só é um exercício demasiado simplista – e por isso pouco útil – como tende a ignorar a interdependência de fatores e não permite olhar de forma alargada para os problemas estruturais do clube e fazer uma análise abrangente, adequada à real dimensão do estado debilitado em que se encontra a Académica de Coimbra enquanto clube profissional de futebol que (ainda) é.

Esta análise global e alargada ao panorama Academista é muitas vezes confundida com a absolvição de responsabilidade dos indivíduos, o que consiste numa falácia que tende a dificultar o diálogo construtivo entre sócios em busca de uma reconstrução do clube.  Aqui fica uma tentativa de fazer esse exercício, e de trazer mais dados para o debate sobre a situação atual da Académica.

Onde estamos, e como aqui chegámos?

1. A (FALTA DE) CULTURA

Se tentarmos ir de fora para dentro, podemos começar pela questão cultural, que é transversal a quase todas as modalidades do desporto português. Todo o adepto português se regozija ao ver imagens de estádios na 3ª Divisão Alemã com mais de 40 mil adeptos. Chegam até a lamentar que “cá não há nada disto” e que é incrível como o Kaiserslautern e o 1860 Munique conseguem tamanha façanha.

No entanto, não é surpresa para ninguém que 99% dos adeptos do nosso país estão concentrados, voluntariamente, em menos de 1% dos clubes portugueses. E que a esmagadora maioria dos clubes e associações desportivas, sejam de que modalidade forem, vivem permanentemente tempos de amargura no que toca a distribuição de verbas por parte das entidades promotoras dos espetáculos. Menos adeptos, menos dinheiro. É assim, e salvo mudanças radicais, de ordem cultural e estrutural, parece que sempre será.

No entanto, este panorama não é novo, nem parece estar particularmente a agravar-se nos últimos anos a nível nacional. Isso faz com que seja mais difícil ilibar a Académica do claro afastamento dos adeptos e sócios que se têm vindo a constatar ano após ano, e de forma penosamente evidente. Olhemos para os números da última década – passada quase metade do tempo entre a Primeira e a Segunda Liga.

Apesar da dimensão do Estádio Cidade de Coimbra facilmente enganar o olho nu na avaliação das assistências dos jogos da AAC, enquanto membro da elite do futebol português, a Académica era consistentemente a 6ª força a nível de adeptos presentes nos jogos em seu reduto – apenas atrás dos óbvios SL Benfica, Sporting CP, FC Porto, SC Braga e Vitória SC. Apenas por duas vezes não o foi, obtendo em regra uma média acima dos 4500 adeptos por jogo. Para se ter uma ideia, a média dos restantes clubes para além dos 5 maiores rondava geralmente os 3 mil adeptos. A afluência dos adeptos da Académica parecia ser incondicional, não variando em função do momento da equipa, fosse esse melhor ou pior.

O mesmo não se pode dizer olhando para a Briosa 2.0 – versão II Liga. Com a descida ao segundo patamar do futebol nacional, a Académica perdeu imediatamente cerca de metade dos adeptos que a viam jogar no Calhabé. Normal, dirão aqueles que reconhecem que a qualidade inferior do espetáculo pode estar na origem dessa perda. De uma época para a outra, a Académica passou de ser o 6º clube com mais adeptos nos jogos em casa, para ser o 15º - ainda que líder nas assistências na II Liga. Em 2017/18, com a Académica a lutar pela subida até ao famoso jogo com o Cova da Piedade, a Briosa recuperou as médias dos seus anos de 1ª Liga – apesar de muito dever esse aumento na média ao facto de ter recebido mais de 20 mil pessoas na tarde desse malfadado embate. Desde esse ano, o Calhabé não só perdeu o “trono” da II Liga, como, ano após ano, tem vindo a perder mais e mais adeptos, tendo sido esta época – 2021/22 – o 6º clube na II Liga, e o 21º a nível nacional.

2. O AFASTAMENTO

A falta de cultura desportiva em Portugal ajuda a explicar estes números, mas não iliba a Académica de responsabilidades na angariação de adeptos e acima de tudo, na fidelização dos que já nutrem por si algum carinho.

Se pequenas cidades e até vilas conseguem dinamizar a relação entre a sua terra e o clube local, estimulando o bairrismo e o amor ao clube da terra – muitas vezes com iniciativas sem custos para o clube -, então a Académica e Coimbra têm obrigação de dar uma lição nesse capítulo e fazer-se valer, por exemplo, da fonte quase inesgotável de jovens para a cidade que é a Universidade.

E ainda que tenha sido notório o esforço recente da AAC/OAF em rejuvenescer a sua imagem a nível digital com um site melhorado, abertura de loja online, uma presença mais forte nas redes sociais e até mecanismos de simplificação no processo de adesão e renovação de quotas de sócio, no fim de contas esse trabalho não se refletiu em mais gente no estádio, em mais sócios, e em mais receita – antes pelo contrário.

É absolutamente indisfarçável o afastamento entre os adeptos e sócios e o clube, que culminou nos tristes episódios recentes.

Na semana em que a Académica bate o recorde (negativo) de assistência no seu estádio – 540 adeptos frente ao CD Mafra -, recebe também a notícia de que deram entrada zero candidaturas à Direção, à Mesa da Assembleia Geral e ao Conselho Fiscal do clube, tendo sido assim adiadas as eleições, outrora marcadas para 15 de Maio.

Terá sido apenas a falta de qualidade dentro das quatro linhas a responsável por este afastamento? É difícil responder taxativamente a esta pergunta, mas olhar para outros países, ou até mesmo para outras localidades em Portugal ajuda a formular uma resposta. Já à pergunta “O que se passou este ano com a Académica?”, a resposta parece ser bem mais simples: “Nada de novo”.

3. O SACO ROTO

É, porventura, o fator mais simples de explicar. Desde que desceu da Liga primodivisionária do Futebol português, a AAC/OAF pouco mais tem feito do que sobrevivido a nível financeiro. Na realidade, o problema financeiro da Académica é muito anterior à descida de divisão de 2016 – essa, apenas a adensou.

Começamos em 2009, mais precisamente no mês de Junho, logo após o término de mais uma edição da 1ª Liga - edição particularmente bem sucedida para a Briosa que terminou em sétimo lugar. Nesse momento, o Diário de Notícias fez notar que “todo o plantel entrou de férias no final do mês de Maio sem que o vencimento correspondente a Abril tenha sido pago”. Nesta altura, a Direção presidida por José Eduardo Simões prometeu regularizar a situação “o quanto antes”, e o tema desapareceu da imprensa.

Em 2012 a situação da Académica registou uma rara melhoria, fruto da vitória na Taça. O golo de Marinho no Jamor não deu só alegrias aos adeptos, mas também permitiu à Académica participar na Liga Europa – permitindo uma folga considerável nas contas da Briosa. A somar a esta participação, houve também as vendas de Ibrahim Sissoko (1,5M€), Sougou (300m€) e Berger (150m€) que deram algum conforto extra aos cofres do Calhabé. Apesar de o Relatório Contas da época 2012/13 registar um passivo (quase) recorde de 8.2M€, o resultado líquido desse período foi mesmo o melhor de sempre, com 1.9M€ de lucro.

Saltando para Novembro de 2014, ainda sob a liderança de JES, dá-se o mediático “choque” com o treinador Sérgio Conceição. O treinador e a sua equipa técnica chegaram mesmo a recorrer às instâncias judiciais para reaver cerca de 20 mil euros de salários em atraso, tendo o treinador feito questão em referir que o que estava em causa eram “as pessoas que dirigem a Académica e não a Instituição, que muito prezo e que está acima de tudo”.

Em 2016, e com o clube a herdar um passivo de 6.4M€ e um prejuízo líquido superior a 1M€ da última época de 1ª Liga, chega a nova Direção da Académica – presidida por Paulo Almeida. Numa primeira ação bastante badalada nos meios de comunicação social mais especializados, a nova Direção demonstrou intenção de proceder ao despedimento coletivo de oito jogadores, por estes recusarem uma renegociação salarial – urgente para cortar gastos no clube. Dos 8, apenas um acabou por não chegar a acordo e saiu – Ivanildo – conseguindo a Académica, ainda assim, cortar em 45% os gastos com pessoal.

Na primeira AG de Paulo Almeida, em Setembro desse ano, o novo Presidente do clube pediu aos sócios autorização para que pudesse, em nome da Académica, contrair um empréstimo bancário de 1M€. “O dinheiro destina-se a pagar um empréstimo anterior de 260 mil euros, impostos e a capitalizar a SDUQ, que está em falência técnica e apresenta uma autonomia financeira 78% negativa", explicou o dirigente nessa AG. Os sócios aprovaram a medida, mas ainda assim Paulo Almeida deixava o alerta para a dificuldade dos próximos tempos, que implicariam “dois milhões de receitas e uma despesa acima dos 5,5 milhões”.

É com pouca surpresa que em Fevereiro de 2019 em mais uma Assembleia Geral, a Direção da AAC/OAF – presidida por Pedro Roxo desde Abril de 2017 – anuncia novamente a falência do clube. Ao longo desse ano, foram surgindo notícias e relatos cada vez mais preocupantes de que eram 3, depois 6, depois 9 os meses em que a Académica estaria em falta salarial para com os seus funcionários, chegando a ser relatado o recurso à Casa dos Pobres por parte de alguns empregados do clube.

Se nessa época (2018/2019), o passivo reportado no Relatório Contas oficial foi de 7.5M€, este atingiu um absoluto recorde dois anos depois, na época 2020/21: 9.3M€, um valor apenas semelhante ao registado em 2011/12, época em que a AAC/OAF auferiu 2M€ em receitas televisivas e prémio de vitória da Taça de Portugal.

E assim chegou a Académica à presente temporada, ao ponto de se tornar corriqueiro o dramático incumprimento da Briosa nos controles salariais efetuados pela Liga a cada trimestre, falhando 3 em 3 possíveis.

Mais uma vez à pergunta “O que se passou este ano com a Académica?” que alguns curiosos poderão ter feito, a resposta mais verdadeira parece, de facto, ser a mesma: “Nada de novo.”

4. O (DES)GOVERNO

Para o fim da lista, e quase como resultado da soma dos dois pontos acima mencionados, vem aquilo que é mais visível por parte de todos os adeptos e que é notório – a má gestão directiva, refletida no Futebol.

Apesar do cocktail absolutamente venenoso em que se viram todos os dirigentes que pelo Calhabé passaram nos últimos (pelo menos) 15 anos, há decisões estratégicas difíceis de compreender à primeira vista.

Desde contratações de jogadores cronicamente lesionados, a jogadores que simplesmente desaparecem do radar dos próprios treinadores, passando por incontáveis mudanças de treinador, a direção desportiva da Académica tem-se vindo a revelar de uma incompetência assinalável.

Foram as dificuldades financeiras que fizeram com que fossem 17 (!) os treinadores a passar pelo banco da Académica nos últimos 10 anos, 4 deles nesta época 2021/22? Ou responsáveis pela contratação, nas últimas 10 épocas desportivas, de 19 jogadores que não chegaram a entrar nem um minuto em campo com a camisola da Académica em jogos oficiais? Ou mesmo pela constante contratação e inscrição de inúmeros jogadores de qualidade muito duvidosa em detrimento daqueles que são formados na Academia do Bolão?

É certo que a qualidade dos jogadores contratados está, em regra, diretamente relacionada com o seu preço, mas aqui não se trata de contratar melhor – antes pelo contrário. Ninguém pede que a Académica invista o que não tem em jogadores de alto nível. O que é estranho - e altamente questionável – é o investimento (quanto mais não seja a nível salarial) em jogadores que chegam e saem de Coimbra sem fazer um único jogo. Só esta época a Académica teve 5 jogadores nessa situação. Seriam assim tão necessários, ao ponto de terem sido contratados? Se sim, porque não jogaram? Se não, porque chegaram a assinar?

Haver um punhado de “erros de casting” é normal, e acontece em todos os clubes, mas haver quase uma média de 2 por ano, durante (pelo menos) a última década, é revelador de (mais) uma falha grave a nível estrutural da Académica – o amadorismo e falta de capacidade daqueles que têm gerido os destinos do clube.

A Académica encontra-se doente, e é impensável acreditar que um conjunto de bons jogadores e um bom treinador possam brevemente devolver a Briosa aos campeonatos profissionais. Os problemas, infelizmente, ultrapassam largamente o relvado apesar de ser aí que mais evidentes se tornam. Na ausência de candidatos a assumir o leme de um barco já naufragado, e na iminência de se afundar definitivamente, é redobrada a importância de todos nós - enquanto adeptos – refletirmos e ponderarmos seriamente no que queremos para o futuro da nossa querida Académica. Para já o cenário é muito negro, e nem a participação na Liga 3 está garantida, podendo a Briosa – no caso de uma eventual inscrição ser negada nesta competição – ser diretamente despromovida para escalões (ainda) mais baixos. O futebol profissional tem as suas exigências, e neste momento está claro para todos que o clube, lamentavelmente, não consegue cumprir com esses requisitos.

Haverá salvação para esta Académica? Cabe aos sócios decidir se sim, e qual.

Henrique Carrilho

11/05/2022   

Sócio 5332