A VOZ DA “AMÁLIA DE SANTA CLARA”
Na passada quinta-feira, da outra semana, Coimbra vestiu-se de gala para a procissão da nossa Padroeira, a Raínha Santa Isabel. Este ano, o evento teve um sabor especial, pois marcou o aniversário da beatificação da nossa Rainha. Como é habitual nas minhas crónicas, a minha mãe, que sempre me acompanha, tem sempre novas aventuras para contar e encantar. Aconteceu desta vez, ter ao ao seu redor, algumas amigas ainda da sua geração, todas ansiosas por relembrar histórias do passado.
Munida de um banco que levei de casa, consegui arranjar um cantinho no meio daquela multidão onde ela se sentou confortavelmente, enquanto o ambiente vibrava entre risos e lembranças.
«- Lembram-se da Joaquina Cadela?» - Começou a amiga Teresa, com um brilho travesso nos olhos.
«- Aquela que conseguiu casar pelas noivas da Rainha Santa, mesmo sem o atestado de virgindade?»
A minha mãe riu-se, acenando com a cabeça.
«- Ah, a Joaquina! O marido dela fugiu na noite do casamento. Com um nome daqueles, quem é que ficava?
De virgem também não teria muito, era boa mulher, mas era " uma mulher da vida". Tinha bom coração. Coitada!»
As amigas riram-se, e a conversa fluiu com histórias dos casamentos e das noivas da Rainha Santa.
«- Este ano, houve cinco casamentos.
Algumas, segundo dizem, já eram avós!»
Comentou a Ana, com um sorriso.
«- E não há idade para realizar um sonho, estamos sempre a tempo! - Agora já não precisam de ir virgens com o atestado. Já está tudo furado. Elas é que têm razão. Casam, mas já vão consoladas. »
A minha mãe sorriu, juntando-se à conversa.
«- É verdade! O amor não tem limites, e a vida é para ser vivida plenamente!»
É o conselho que dou à minha filha. Eu ia ficando em silêncio, pois de casamentos não me apetecia muito falar.
Nesse momento, a memória dela trouxe à tona outra história. «- E o Caio? Lembram-se dele?»
«- Coitadinho, ficou fechado toda a noite no cemitério de Santa Clara!
Só gritava: Caio, Caio, Caio!
Quem passava, pensava que eram almas do outro mundo e fugiam a sete pés e ele só queria que lhe abrissem o portão. Estava borradinho de medo. Só ao outro dia é que o encontraram. Dormiu nessa noite junto à capela.»
As gargalhadas surgiram como as recordações, mas logo a conversa voltou a centrar-se nas aventuras da minha mãe.
«- E tu, Fernanda? A noite em que fugiste para o concurso, lembras-te?» - Perguntou a Teresa, piscando o olho.
A minha mãe sorriu, seu olhar iluminando-se.
«-Ah, isso foi uma aventura! Foi no ano de 1950.
Com a ajuda da minha irmã mais velha e dos vizinhos, consegui inscrever-me no concurso, "Os Companheiros da Alegria". Foi na antiga praça de touros que havia no Portugal dos pequeninos, sem que o meu pai soubesse. Eu tinha apenas nove anos e enfrentei 250 concorrentes.»
«-Como é que conseguiste fugir?» - Perguntou a Ana, claramente intrigada.
«-Os vizinhos ajudaram e os meus irmãos deixaram os ferrolhos da porta abertos para que eu pudesse sair. Enquanto os meus pais dormiam, eu e a minha irmã fizemos a nossa fuga durante a noite. Ela olhou para a tia Rosa, que estava ali ao seu lado. Mesmo que ele me desse uma tareia, eu fugia na mesma.
O apresentador, o Igrejas Caeiro, arranjou-me uma cadeira para eu poder chegar ao microfone. »
«-E depois, o que aconteceu?» - Indagou a Teresa, já interessada.
«-Quando voltei, trouxemos a polícia connosco, porque estavam preocupados com a nossa segurança. Eu ganhei o concurso e trouxe para casa 500 escudos e os prémios todos, uma fortuna naquela altura.
Cantei, “Tudo isto é fado”. Foi a partir daí que começaram a chamar me a “Amália de Santa Clara”. O meu pai é que não gostou nada da brincadeira e nem o dinheiro o seduziu naquela noite. Nunca quis que eu seguisse essa carreira.»
A conversa fluiu entre risos e histórias do passado, e eu sentia que cada palavra dada era como uma melodia familiar. A sua trajetória, agora recordada entre amigas, era uma sinfonia de força e amor, uma história de resiliência que desafiava o tempo.
«- Mesmo que o meu pai não me deixasse ser fadista, nunca deixei de cantar. O fado vive em mim, mesmo que a vida tenha sido dura.» - Disse a minha mãe, com um sorriso que refletia a sua paixão.
A emoção tomou conta de mim, pois percebia que, ao partilhar estas memórias, ela não estava apenas a recordar o passado, mas a celebrar a vida enquanto ainda estava aqui. A história da minha rainha"Fernandinha" é uma lição para todos nós.
Nunca devemos deixar de lutar pelos nossos sonhos, nem de amar incondicionalmente aqueles que nos rodeiam.
Que a melodia da sua voz continue a tocar os corações de todos os que a conhecem, e que, por muitos anos, ainda me embale com suas canções, enquanto caminhamos juntas pelas ruas de Santa Clara, sempre unidas pela força do amor.
Para ti, minha querida mãe para que a tua voz nunca seja esquecida.
Bom fim de semana.
Boas leituras.
Manuela Jones