Beco com saída

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Passarei o resto da vida a olhar por cima do ombro, mas, oito meses depois do evento, inicio a fuga ao medo.

Poucas pessoas terão um presente de aniversário de 18 anos como o meu. A avó ainda limpava as retretes das senhoras e já a noite caía. Na penumbra, por trás dos cortinados surrados da sala, esbarrei os olhos no Tó Fuminho, que corria, esbaforido, pelo beco dentro. Escorregou junto do entulho que o Baltazar tinha encostado à parede da casa de banho que andava a construir no pátio, e foi ali mesmo que enterrou a arma e a droga. Saltou por cima do muro da Benvinda e perdeu-se no labirinto do bairro. Em menos de cinco minutos, chegou a bófia. O aparato do costume. De armas em punho, a algazarra das pancadas nas portas, os gritos da vizinhança. A mim calhou-me a agente cor de ébano (a palavra que a professora de Português usava, “na tentativa de desmistificar o racismo”). Não hesitei: contei-lhe quem, onde, o quê. Li-lhe o pensamento no gesto de baixar a arma e fechar a porta. Na confusão, ninguém percebeu de onde ela saíra nem como encontrara a arma. Soube que se apiedara da vida que me roubaria, se me identificasse como testemunha, quando a vi desviar as atenções dos colegas para longe da minha casa. Fuminho e Picasso, rapidamente detidos, assumiram as 75 doses de cocaína, as 40 de heroína, a canábis e o distintivo da PSP, roubado a um cúmplice desta corporação. No tribunal, Picasso jurou matar Fuminho por ter escondido as 40 doses de heroína que trazia com ele no dia em que tinha sido perseguido pela GNR.    

A voz roufenha chama os passageiros para o voo rumo ao Brasil. Avanço para a fila, confiante. A rapariga de vestido solto, havaianas e óculos de sol deixa para trás o bairro infecto, gasto e perigoso. O turístico sorriso de expectativa de férias espalha-se pelo meu corpo, do rosto aos saquinhos brancos que o meu estômago suportará hoje. Não tenho medo, mas minto-me para poder sentir alguma coisa. Ter medo ajuda a perceber que estamos vivos.

 

PC