CALHANDREIRA DO TEJO

JO JONES32

 

Na cidade de Lisboa dos séculos XVIII e XIX, uma profissão marginalizada, mas essencial naquela época, emergiu nas sombras da sociedade, a calhandreira.
Estas mulheres, muitas delas escravas, desempenhavam um papel vital na manutenção da higiene das casas senhoriais, recolhendo os dejetos e a urina nas primeiras horas da manhã. O seu trabalho, embora árduo e muitas vezes invisível, era um reflexo das profundas desigualdades sociais que caracterizavam esta época.

As calhandreiras caminhavam pelas ruas, enfrentando o desprezo e a indiferença das classes mais abastadas. Eram vistas como figuras de baixa classe, marcadas pelo estigma e pela opressão. No entanto, no meio da dureza da sua realidade, estas possuíam uma capacidade única de observação e um conhecimento sobre a vida íntima das famílias que serviam. As conversas entre elas, carregadas de rumores e confidências, davam origem ao que se conhecia como "calhandrice",o ato de divulgar detalhes da vida alheia, frequentemente recheado de juízos e opiniões sobre os costumes e comportamentos das senhoras. Hoje chamar - lhe iam " fofoquice".

As calhandreiras, muitas vezes, tornavam - se as cronistas sociais, não oficiais da sociedade lisboeta. As suas vozes ecoando no meio do silêncio imposto por uma estrutura social opressora. Elas viam, escutavam e comentavam sobre a vida nas casas senhoriais, revelando, através de suas histórias, a hipocrisia e os dilemas enfrentados pelas mulheres da elite. As tais crónicas de mal dizer, mas com uma razão justificada. Assim, o que poderia ser encarado como um ofício degradante transformava se numa forma de resistência, uma maneira de afirmar a sua presença num mundo que tentava silenciá-las.

O sacrifício dessas mulheres não se limitava ao trabalho duro, mas estendia se às suas vidas pessoais. Muitas eram separadas de suas famílias e sujeitas a condições desumanas. A luta por dignidade e respeito era uma constante, e suas narrativas, frequentemente ignoradas, revelam a força e a resiliência que brotavam em meio à adversidade. Através do olhar das calhandreiras, a sociedade lisboeta dos séculos XVIII e XIX tornava - se um campo de batalha entre classes, onde o poder e a opressão se entrelaçavam num tecido complexo de relações sociais.

Com o passar do tempo, a profissão de calhandreira foi gradualmente desaparecendo, assim como a escravatura, que foi abolida em Portugal em 1869. A extinção dessas práticas, embora celebrada como um avanço social, também significou o fim de uma era em que essas mulheres, apesar de sua marginalização, desempenharam um papel crucial na narrativa da cidade de Lisboa. A luta pela dignidade, igualdade e reconhecimento continuou, mas a história das calhandreiras tornou se uma memória distante, muitas vezes esquecida.

Assim, apesar de sua condição subalterna, deixaram uma marca indelével na história de Lisboa. Elas lembram - nos que, mesmo nas situações mais difíceis, a voz da resistência pode surgir, desafiando as normas sociais e lutando por um lugar na narrativa coletiva. São testemunhas silenciosas de uma época, cuja memória deve ser honrada e resgatada, para que possamos compreender melhor as raízes das desigualdades que ainda persistem na sociedade contemporânea. A profissão está extinta.

O mau cheiro no ainda persiste nos tempos modernos e as más línguas também.

Bom fim de semana.
Manuela Jones