Esticar o dedo

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Laurinda afundava o seu desespero no assento frio e rasgado do velho Peugeot. À sua volta, o negrume da noite mal lhe permitia vislumbrar os contornos do pinhal. Nos 36 anos de viagens da aldeia à agora cidade, ficara a conhecer aqueles pinheiros um a um. Manter-se dentro do carro era um risco iminente, mas sair para a tempestade apavorava-a. Por que raio haveria o carro de avariar logo ali, a seguir ao cemitério, depois da Curva da Morte? Mesmo que alguém passasse naquele ermo, às onze e meia da noite não pararia, porque seria impossível reconhecer o carro. Era o final perfeito para mais um dia imperfeito.

O bip-bip da máquina continuava a martelar-lhe o cérebro. Ainda por cima, uma colega faltara sem avisar e a chefe praticamente a obrigara a continuar o turno, que começara às 8 da manhã. É claro que poderia ter-se recusado. Afinal, não cultivava uma única amizade no trabalho — tal como na vida — nem precisava do emprego. Mas, a sua aparente tranquilidade e timidez levavam os outros a testarem os seus limites. O seu caráter passivo permitia-lhes isso.

Sabia que não era bonita. A verdade é que, há muito tempo, se esforçava por não o ser. Passar despercebida para poder observar. Quem repararia na “caixa” de supermercado, monocórdica, sempre de roupa larga e fora de moda — camisas brancas por dentro das calças pretas de vinco —, o longuíssimo cabelo castanho encrespado, cor de nada, mal apanhado num rabo-de-cavalo, e de sapatos pretos, estranhamente com salto? Baixo, mas salto. A sua banalidade era perfeita para ver o mundo por detrás dos óculos pretos e demasiado grandes para o seu rosto miúdo. As pessoas aproximavam-se dela e faziam-lhe confidências. Pessoas maioritariamente das aldeias próximas. Pessoas apressadas, cansadas, de ar zangado com os maridos, os filhos, a vida. Poderia ser ela. Se alguma vez tivesse tido um namorado ou pretendente que fosse, se alguma vez tivesse copulado com um homem. Se alguma vez tivesse sequer beijado um. Se tivesse família.

A luz encandeou-a violentamente. Só ouviu o ronco da buzina quando o camião guinou à sua esquerda, para parar logo um pouco à frente. Laurinda não sabia se o coração batia a descompasso ainda do susto, da alegria pela chegada de ajuda ou de receio por quem já descia o degrau e se metia à forte chuvada que não dava tréguas. Como sempre, nos momentos de ansiedade, puxou o cabelo para trás da orelha esquerda. Quando o homem bateu no vidro da janela, reconheceu-lhe, imediatamente, o rosto por baixo do capuz do impermeável: Hilário!

— Laurinda! És a Laurinda, não és? O carro avariou em bom sítio, mulher! Anda, levo-te a casa e amanhã trata-se disto!

Hilário revelou-se uma bênção, nos dezassete quilómetros que ainda faltavam para chegar a casa. Conhecia-o de vista por ser de uma daquelas aldeias serranas e sempre ouvira falar do seu temperamento bonacheirão, mas de homem de família responsável. O caminho fez-se quase todo do seu silêncio e da tagarelice dele. Ia ansioso por chegar a casa para ver a mulher e os quatro filhos, que acordaria sem pejo, depois de três semanas lá pelo Luxemburgo. Ainda que não houvesse a algazarra de quatro adolescentes e a famosa voz estrídula da mulher, Hilário encheria sempre a casa de vida.

— Então, mulher, o que dizes do meu camião? Aposto que nunca tinhas andado à boleia! — gargalhou o homem.

Mas, assim que pronunciou estas palavras, amaldiçoou-se por tanto palavreado. Lívida, Laurinda desviou os olhos para a estrada e os poucos quilómetros em falta foram percorridos sob um silêncio de chumbo.

Naquela noite, deitado ao lado da mulher, Hilário não conseguia adormecer. Sabia que Laurinda também não. A sombra daquela figueira maldita tinha-se-lhes entranhado nos ossos.

 

*

 

Debaixo do sol inclemente daquele verão precoce, sentada em cima da mochila pintada com bandeiras de vários países, Mariana lia um livro de Gonçalo Cadilhe sobre viagens com um olho e mantinha o outro na direção das bombas de gasolina, onde há meia hora não parava um único carro. Aprendera, por experiência, que viajar à boleia era uma arte. Preparar-se para esperar longas horas era fundamental. Por isso, munia-se sempre de um livro e de um caderno de anotações. Registar o máximo que pudesse fazia parte daquele jogo que se impusera.

Levantou-se para se encostar a uma sombra, já que não podia usar chapéu nem óculos de sol nem nada que lhe tapasse o rosto, para inspirar confiança nos condutores, mas, ao ouvir um ronco de automóvel, a incerteza das vidas com que se cruzaria fez-lhe retumbar o coração. A magia recomeçava ali. Atirou para trás da cabeça os longos caracóis louros, puxou a t-shirt justinha para baixo e compôs o seu melhor sorriso. Ao mesmo tempo, levantou o divertido cartaz, esmeradamente escrito em letras garrafais, bem separadas e visíveis, onde se podia ler: “Noviça em fuga”. Tinha a certeza de que, até ali, mais do que a sua postura bonita, desenvolta e alegre tinham sido os divertidos cartazes que engendrava a conseguirem-lhe tantas e tão profícuas boleias.

Mas o sorriso foi-se transformando em espanto, depois em vergonha e, finalmente, em aflição, quando da carrinha de noves lugares, que parou na berma da estrada, saíram quatro freiras. Todas de hábito preto, todas de rosto redondo e rosado, todas da mesma estatura. Mariana percebeu que jamais conseguiria distinguir umas das outras. Perante o seu desconforto, as freiras, olhavam-na com bonomia e até com risinhos. Uma delas puxou o véu para trás da orelha direita e perguntou-lhe:

— Então, para onde foge esta menina?

— Desculpem a impertinência do cartaz, irmãs. É só uma brincadeira para arranjar boleia. Vou para Caminha.

Estupefacta, ouviu as quatro mulheres mandarem-na entrar e lá seguiram viagem. Iam a Vigo assistir aos Votos Perpétuos de uma irmã do convento. Como é que Mariana, sempre tão bem documentada, não se lembrara de que havia ali perto um convento? Bem, o estrago estava feito, pensou. Ou não. Ao contrário do que esperava, a boleia foi uma das mais divertidas desde que se metera naquelas andanças. As freiras eram alegres e nada coscuvilheiras. Não lhe perguntaram quem era, de onde vinha, o que queria da vida. Mas Mariana contou-lhes que era arquiteta e que ia ter com os irmãos mais velhos para esperarem pelo pai, que vinha de Espanha, onde tinha ido tratar de negócios da família. Passaram a viagem a cantar. Primeiro cantarolaram com algum recato, em respeito pela companheira. Tendo percebido que Mariana ia abanando a cabeça e batendo o pé, apesar de não conhecer nenhum daqueles cânticos religiosos, tornaram-se mais ousadas e os últimos quilómetros foram percorridos ao som estridente de “I´ll climb any moutain”, de Marty Brown. Nos outros carros que passavam por elas, algumas pessoas espantavam-se, outras meneavam as cabeças em claro sinal de que o mundo estava perdido, outras riam e abanavam as mãos. A imagem de quatro freiras e uma mulher loira a cantarem, dançarem, abanando cabelo e véus e de braços no ar era uma visão inusitada.

Mariana despediu-se das freiras à entrada de Caminha, satisfeita com o que conseguira: divertira-se, socializara com gente bem-disposta e não criara laços. À noite, os seus fantasmas pareceram-lhe um pouco mais benevolentes do que de costume.

 

*

 

O regresso a casa fez-se com boleias difíceis. Nenhuma família, sobretudo com crianças, foi sensível aos seus cartazes apelativos: ”Oferece-se chocolate grátis” ou ”Vacinada contra a raiva”. Teve de se contentar com cerca de 100 quilómetros num caterpillar, onde foi enfermeira com urgência de apanhar o avião para o Mali, onde ia em missão humanitária, outros tantos num camião de peixe, onde foi maquilhadora de cadáveres, uma nova profissão no país, e o resto no Expresso, onde foi uma mulher triste em busca de si. O tempo urgia.

Dali a um mês teria nova oportunidade. O formigueiro da adrenalina teria de esperar.

 

*

 

Ao chegar à estação das camionetas a cerca de trinta quilómetros de casa, atreveu-se a tirar os óculos escuros. Dirigiu-se à casa de banho, onde passou poucos minutos, e apanhou a última camioneta do dia que a levaria ao seu lar. Da pequena mochila, saíam alguns poucos caracóis louros, que Laurinda se apressou a esconder. Não tardaria a recolher-se às paredes nuas da sua casa, à solidão e ao sofrimento. Um pequeno interregno de um mês, até à próxima folga de três dias, até nova aventura.

 

                                                                                                                                     (Continua)

 

PC