Margarida e a Gaivota
1.
Hoje tenho 6 anos outra vez.
Estou no grande salão de jantar do navio e tudo me aborrece. Na minha mesa, estão o pai, a mãe, o avô – claro! –, um homem e três mulheres que não conheço. Mantenho a minha postura habitual das birras: braços cruzados, beicinho e olhos no chão. A mãe voltou a obrigar-me a usar um vestido e apertou os meus horríveis caracóis em dois pavorosos ganchos brilhantes, que me arrepelam o cabelo. Pareço uma boneca! Mais uma vez, o pai deixou-a fazer o que queria e só o avô me defendeu, pensando que eu não ouvia. Mas, apesar da minha atitude propositadamente antipática, não consigo deixar de olhar de esguelha para a amiga do avô, que está ao meu lado. Como ninguém me dá atenção, levanto-me, devagarinho, e encosto-me à senhora.
— Tens um cabelo tão bonito! Lisinho. Deve ser muito macio. Posso fazer-lhe festinhas? Odeio os meus caracóis emaranhados! Herdei-os da mãe.
O avô também devia gostar de cabelos lisos e macios, porque olhava para a amiga tão embasbacado como eu.
A resposta foi a típica dos adultos, que acham que as crianças não percebem nada de nada:
— Claro que podes mexer no meu cabelo. Mas, há uma condição: que, a seguir, me deixes enrolar os dedos nos teus caracóis. Adorava que fossem meus.
Há gostos para tudo! Lá trocámos festinhas no cabelo uma da outra. Rapidamente me voltei a sentar, porque o avô me olhou daquela maneira. Ainda não disse, mas o avô é a pessoa mais importante da minha vida. É o meu companheiro. Como diz o pai, “anda sempre com a miúda para cima e para baixo”. Leva-me à escola, vai buscar-me, faz-me o lanche, ajuda-me nos trabalhos de casa, leva-me a brincar na praia e diz que eu sou a pessoa de quem mais gosta no mundo. Obedeço-lhe sempre sem ele precisar de me repreender.
Voltei ao meu estatuto de birrenta profissional, mas a amiga do avô segurou no meu queixo e fez-me sinal para olhar para o teto.
— Não imaginas as coisas bonitas que deixamos de ver, quando olhamos só para baixo.
Como é que eu não tinha visto aquilo? Por cima das nossas cabeças, dentro de círculos pintados no amarelo, cavalinhos galopavam num céu azul salpicado de nuvens branquinhas. Parecia um carrossel! É claro que mal comi e passei a noite de cabeça levantada, a passear pelo salão, ouvindo as conversas e metendo os dedos por entre as grades bordadas de ferro preto fininho. Pareciam os bordados das roupas que a mãe vende e usa. Mas aqui são lindos.
Num momento em que voltei à mesa, suspirei na direção da amiga do avô:
— Estou extasiada!
Ela riu-se muito, porque achou que não era comum uma menina da minha idade conhecer aquela palavra.
— Foi o avô que ma ensinou — expliquei. — Costumamos fazer listas de palavras. Temos um caderno para as indesejáveis e outro para as novas e importantes. O caderno das indesejáveis está em branco. O avô diz que eu vou perceber porquê quando crescer, que há coisas que devo perceber sozinha.
Há pouco ouvi uma palavra nova. A tia estava a dizer que entre ti e o avô há uma certa “aminosidade”. O que é?
Todos pararam de falar e olharam para mim. O avô ficou muito embaraçado, mas a senhora respondeu logo, rindo:
— A palavra é “animosidade”. Quanto ao significado…vais percebê-lo quando cresceres.
Não me zanguei. A amiga do avô é engraçada e dá-me atenção. Pedi à mãe e ao pai que ela me fosse deitar. Disseram que não devíamos dar esse trabalho a outra pessoa e que, certamente, a senhora quereria ficar para o baile. Mas, afinal, foi ela que repetiu o meu pedido.
— Não queremos que a Margarida adormeça em cima do prato, como nos desenhos animados. Se não se importarem, deito-a, conto-lhe uma história e espero que cheguem.
A mãe e o pai aceitaram e deram à senhora o cartãozinho mágico que abria a porta do quarto. Não esperei que mudassem de ideias. Dei-lhe a mão e saímos as duas para o convés.
Estava um fresquinho de arrepiar a pele e a Marta – já éramos amigas - deixou-me espreitar pela amurada, segurando-me com muito cuidado, para eu ver o mar bater contra o casco do navio. Assustou-me um bocadinho ver o escuro lá em baixo e ouvir aquele som cavernoso. Chegámo-nos para trás e íamos começar a prosseguir caminho, quando nos deparámos com uma gaivota que, pousada no parapeito, nos olhava fixamente. Eu arregalei os olhos e, entusiasmadíssima, mas em silêncio para não assustar a ave, apontei para ela. No entanto, a minha nova amiga pôs-me um braço sobre os ombros, puxou-me para si e fez-me avançar junto à parede. Sim, eu também sei que há gaivotas que atacam as pessoas. Não adiantou. Quando passámos por ela, a gaivota saltou para o chão e acompanhou-nos, aos pulinhos, até chegarmos à entrada das escadas que nos levariam ao meu quarto. Apesar de um certo receio, fomos dando uns risinhos. Estranho é que, já no corredor do piso inferior, olhámos para trás e, no topo das escadas, lá estava ela, parada, no meio do umbral da porta larga, a olhar-nos fixamente. Estugámos o passo e dois corredores a seguir, entrámos no quarto.
— Deve ser uma gaivota tridáctila. Só essas se aventuram em mar alto – expliquei eu.
A amiga do avô ficou espantada por eu saber aquilo. Perguntou-me se eu queria ser bióloga. Inspirei fundo, levei-a para o sofá – o sono já se tinha espalhado – e falei-lhe sobre o grande problema da minha vida:
— Não. Gosto muito de animais. Em casa do avô há sempre gatinhos e cachorros. O meu preferido é o Nino. É um persa de ar pouco simpático, que se apaixonou por mim, como diz o avô, e deixa-me brincar com ele. Mas o que eu quero é ser entomóloga como a minha bisavó. Adoro insetos! Vejo todos os programas de televisão sobre bichos e tenho imensos livros sobre eles. O problema é que a mãe acha isso uma palermice. Quer que eu seja modelo e empresária. Empresária não sei bem o que é, mas modelo não quero ser. Odeio vestidinhos, sapatinhos, lacinhos! Pelo contrário, adoro ir para a casa da aldeia com o avô. Ele deixa-me vestir calças e camisolas velhas e calçar sapatilhas. Comprou-me umas jardineiras giríssimas, mas, como é um segredo nosso, só posso usá-las lá, quando estamos sozinhos. Passamos o tempo à procura de insetos. Fotografamo-los e o avô mostra-mos no computador e compra-me livros para eu os poder ver sempre.
O sono chegou, enquanto a amiga do avô me falava sobre os nossos sonhos.
PC