MOLEIRINHA
(Do livro de leitura da 4ª classe de 1951)
Pela estrada plana, toc, toc, toc,
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...
Toc, toc, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toc, toc, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
........
Quem nunca ouviu este lindo poema de Guerra Junqueiro que fazia parte dos antigos compêndios de leitura da quarta classe?
Ao longo da história, Portugal foi palco de uma riqueza de profissões que, com a evolução da sociedade e das suas necessidades, desapareceram gradualmente.
Entre elas, destaca-se a figura do moleiro, da moleira, imortalizada por Guerra Junqueiro, que representa não apenas uma atividade artesanal, mas também um profundo vínculo com as tradições rurais. Hoje, ao prestarmos homenagem a estas profissões que já não existem, refletimos sobre a importância de preservar a memória dos saberes e dos ofícios que um dia foram essenciais à vida das comunidades, mantendo viva a nossa identidade cultural e a importância de ter naquela altura o pão na mesa depois de transformado o milho, trigo e centeio em farinha.
Hoje vou contar-vos a história de duas moleirinhas que vinham de Cernache com o seu jumento, recolher o milho para moer nos moinhos ali existentes , trazendo de volta a farinha para fazer o pão e o farelo para os porcos comerem.
Era uma vez, nas memórias da minha infância, duas irmãs moleirinhas chamadas Nazaré e Maria. Todos os dias, conduziam a sua velha carroça, carregada de sacos de farinha, onde o chiar das rodas na velha estrada de Lisboa anunciava a sua chegada. Eu, era muito criança e no caminho de retorno a casa vinda da escola, tinha a sorte de por vezes receber boleia em cima da carroça e dos sacos da farinha. Sentia o vento fresco no meu rosto e respirava o aroma da vida simples e honesta.
Aquelas viagens eram momentos mágicos, cheias de risos e histórias contadas entre os solavancos e o chiar desengonçado da carroça. Ti Nazaré e Ti Maria como eram chamadas, não eram apenas irmãs, eram cúmplices e trabalhadoras incansáveis. Cada uma contribuindo com a sua força para um ofício que era tanto uma tradição como uma forma de vida.
Mas um dia, como na vida, mistura-se o infortúnio com a alegria. O burrito já cansado, exausto e velho, havia suportado por tanto tempo o peso das viagens entre Cernache e Coimbra que sucumbiu ao cansaço e caiu mesmo em frente à nossa casa. Num instante, a carga virou-se, os sacos de farinha espalharam - se pelo chão, e as duas irmãs foram projetadas para a valeta, apanhadas pela surpresa e pelo susto. No meio do tumulto, o desespero transformou-se em preocupação ao ouvir se um grito ecoar no ar:
-Mana, estás morta?
A resposta, carregada de alívio, chegou quase que instantaneamente: - Não e tu?
- Eu também não !
Olhando a imagem da Rainha Santa Isabel que ainda hoje existe na velha casa em ruínas, agradeceram o milagre de estarem vivas.
O som das suas vozes trouxe um sentimento profundo de união e resiliência, mostrando que, apesar das adversidades, à força do amor fraternal nada se opõe.
Toda a gente veio ajudar, dando água e descanso ao burro, prestando ajuda nos ferimentos ligeiros e na carga. Lá continuaram viagem.
Durante alguns anos ainda se ouviu o chiar das rodas, mas depois, nem burro nem moleirinhas.
Esta história, humilde e sincera, é uma homenagem à força destas mulheres e homens que, com coragem e determinação, enfrentaram os desafios do dia a dia. É um tributo não só ao seu trabalho incansável, mas também à beleza dos laços que se formavam. Hoje os moinhos ainda existentes e recuperados em Portugal, são voltados para o turismo. Eu continuo a viver no mesmo local, mas já não ouço o toc, toc das irmãs moleirinhas e do burrito cansado.
Mas ainda faço a broa no velho forno da quinta.
Manuela Jones