PROFISSÕES QUE JÁ NÃO EXISTEM
No Mondego em Coimbra,
a lavadeira canta,
Só a brisa escuta a dor do seu fado que Coimbra encanta.
Da cinza surge a barrela,
Na calma das areias,
a vida afinal não era assim tão bela.
As pedras choram a dor das canções,
Ecoam no rio as mais suaves emoções.
A roupa tão branca, de um brilho profundo,
Que até mesmo a neve sente inveja lá no fundo
Os peixes pulam, a água a fluir,
Ganham o pão suado, a vida a afligir.
Nos braços da mãe, os sonhos desenhados,
No pranto e no riso, os filhos amados.
M. Jones
- Mãe, nevou no areal do Rio?
A mãe, com um sorriso ternurento, respondeu:
- Não, filha, é a roupa das lavadeiras a corar.
Os olhos da menina abriram-se em deslumbramento.
-Mãe, mas que roupa tão branquinha!
Com um olhar distante, a mãe recordou-se da beleza simples e laboriosa da vida à beira do rio Mondego que corre aos pés de Coimbra.Também ela já tinha esfregado a necessidade de ganhar o pão quando ficou órfã de pai e teve que ajudar a sua mãe a sustentar os seus irmãos.
- Filha, as pedras do rio são duras e a água corrente deixa a roupa sempre assim.
- Mas, elas só têm o sabão azul e não usam Omo, trazem cinzas.
A mãe sorriu, reconhecendo a inocência da filha e a magia daquele momento.
-Filha elas têm o Mondego, as pedras para esfregar, bater a roupa e o sol para a corar no areal.
Estava desenhada diante delas uma cena que já se repetia em gerações. Um ritual da cidade de Coimbra que, mesmo com o passar dos anos, mantinha a sua essência.
Acordava nas manhãs frescas, cheirando a água e a sabão. As lavadeiras, com grandes trouxas de roupa à cabeça, provenientes das casas dos grandes senhores e das pensões, enfiavam-se na correnteza do rio, dando vida a uma tradição que carregava a luta e a resiliência de tantas mulheres, para poderem matar a fome em casa.
Eram tempos difíceis.
Com mãos calejadas e gastas, lavavam não apenas a roupa, mas também as memórias e histórias de uma comunidade que foi desaparecendo.
O sol brilhava sobre elas, como se o próprio céu quisesse aplaudir o seu labor. As gargalhadas das crianças a banharem-se no rio, misturavam-se ao barulho das águas, enquanto as lavadeiras, de coração aberto, transformavam o árduo trabalho numa dança de rins e gestos, cantavam as suas mágoas.
Naquela cidade onde o Mondego corre com a mesma determinação de sempre, percebe-se que a vida, por mais difícil que seja, é feita de pequenos momentos de beleza.
E assim, Coimbra respirava, vivia e encantava com suas cores, sabores e cheiros, e principalmente, com as histórias que se entrelaçam nas correntes da memória.
As lavadeiras do Mondego já não cantam ao bater da roupa. A ponte do Modesto já não existe. As barcas que transportavam a roupa e desciam o rio até á cidade são memórias do passado. As máquinas substituíram a força de mulheres que carregavam as trouxas de roupa à cabeça e os filhos debaixo dos braços. Já não há areal e os que existem são agora praias fluviais, onde as gargalhadas infantis já não se misturam com as águas e a melodia das lavadeiras perdeu-se na bruma do tempo.
Recordo com saudade as manhãs quentes, quando a água do Mondego, fresca como a memória, acolhia o labor das mulheres que, com os braços fortes e corações generosos, dedicavam-se a um ofício tão simples quanto árduo e sublime. A bandeira colorida das suas saias balançava ao vento, enquanto os seus cabelos reluziam sob a luz do sol e dos lenços coloridos, marcados pelos anos de trabalho e pelos sorrisos partilhados nas horas de descanso.
O rufar da roupa batida nas pedras foi trocado pelo zumbido mecânico que ecoa nas casas, criando um vazio que apenas deixa vestígios de um passado vibrante. As conversas animadas e as canções que preenchiam o ar foram silenciadas, e no seu lugar, há um silêncio que pesa, como uma sombra sobre o rio.
Os areais do rio, agora praias fluviais, antes espaços de encontro e de partilha, agora acolhem os veraneantes , mas por vezes parece que a alma de Coimbra se esconde nas profundezas do Mondego. Nesses momentos de nostalgia, dá-se conta de que cada pedra do rio guarda um fragmento das histórias e dos rostos das mulheres que, com força e determinação, trouxeram vida às suas margens.
E, embora os tempos tenham mudado, a essência da cidade persiste. O Mondego continua a correr, talvez não tão puro, mas ainda cheio de histórias. Lembro-me, então, das lavadeiras e da sua sabedoria silenciosa, que nos ensina a valorizar o passado e a força das mulheres que, mesmo em tempos difíceis, encontraram beleza no simples ato de se fazerem ouvir através de cada gota de água.
Porque a história de Coimbra não se apaga. As memórias dos seus risos e dos seus fardos, permanece nos corações de todos aqueles que amam esta cidade, um testemunho da coragem e da resiliência que, transcendendo o tempo, continua a inspirar novas gerações. E quem sabe, no murmúrio das águas, ainda possamos escutar as suas vozes, a ecoar, como um farol de esperança, num mundo que tanto necessita de recordar a força da tradição e da união.
Manuela Jones