Sinais de luto

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Quando na minha aldeiaos sinos dobravam, os homens tiravam o chapéu e as mulheres rezavam pelo descanso eterno. Se era só o sino pequeno que virava, logo elas se apegavam à Senhora da Boa Morte, pois alguém estava em agonia à espera da extrema-unção. Por sua vez, se ao meio da tarde o galo cantava ou os cães uivavam era mau agoiro, tal como quando a coruja piava no cume da casa pela noite fora, pois adivinhava a morte.

 E foi por causa da morte que a tia Hermínia, depois de assistir a um funeral ali em Mira, assim falou com o coveiro, uma figura querida daquelas gentes, sobretudo dos mais velhos, que inúmeras vezes o procuravam para lhe recomendar como queriam ser sepultados:

- Eh João, eh amiguinho, quando me fores a enterrar, se a cova tiver auga, manda-a tirar, não poises o meu caixão na lama, não? E não deixes que me calquem a terra, não mê menino? E o tio João ouvia-os a todos e muito particularmente aquelas mulheres mais idosas, com quem mantinha diálogos ternurentos: - Não se apoquente que eu faço-lhe a vontade, mas isso vai ser daqui a muitos anos, porque vossemecê está rija e cheia de saúde. - Eh Joãozinho, questionava-o agora a tia Rosa, se no Dia de Finados a minha campa estiver emboitada, dás-lhe uma lavadela, pões lá uns verdes e acendes-me uma lamparina? E aquele dizia que sim e levava-a a sentir que tudo faria como ela pedia, enquanto escutava o habitual agradecimento: - Faz-me isso por caridade João, que eu lá em riba peço ao Senhor por ti!

 Episódios como estes não estão longe daqueles que ainda hoje levam pessoas de idade avançada, ao recearem não ter o enterro que desejam, a procurar a gente que sempre se encarregou desses serviços e que as funerárias vieram substituir, deixando tudo ajustado e pago. Esse acordo, verdadeiro compromisso de honra, sempre assentou na confiança entre as partes, nada ficando escrito, nem constando que alguma vez fosse preciso. Tal contemplava desde a tramitação legal até ao enterramento, a limpeza periódica do jazigo e a colocação de uma lápide com a data do nascimento e do falecimento, a contratação de trintários ou de missas avulso por sua alma, e de algum pagador de promessas se as houvesse por cumprir. Sobretudo por divergências familiares, o visado chegava a deixar impedimentos para que certas pessoas não fossem ali enterradas, cabendo igualmente a quem fizesse o funeral zelar por esta decisão. Também a presença de uma Filarmónica, habilitada a participar nestas cerimónias, podia fazer parte do combinado e traduzia prestígio. A ela competia tocar e cantar os ofícios fúnebres Libera me e Memento ao levantar e descer do corpo, as marchas fúnebres no trajecto e, quantas vezes, missas de Requiem ao tratar-se de uma pessoa abastada. Por vezes, a distância era grande, como no caso do percurso entre a Tocha e o cemitério de Arazede, cerca de oito quilómetros palmilhados a pé atrás do defunto. E era então, uma vez concluído o serviço, que os músicos e quantos tinham feito parte do acompanhamento comiam o habitual bacalhau dos defuntos, a par de muito vinho e tremoços. Tudo servido sem misérias, na taberna ali perto, conforme o morto havia determinado!

Imagem retirada da net - "O coveiro"

                                                                                                                                                                                                                                    António Castelo Branco