Uma Família Irreverente - Continuação

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Capítulo IV

 

Agora foi a vez de a joaninha ficar aterrorizada. Num salto muito mais rápido do que se pensava que a meia asa lhe permitisse, levantou bem a carapaça, para que o sapo percebesse, pela sua cor vibrante, que ela lhe saberia muito mal e deitou-se de barriga para cima, expulsando das glândulas das pernas um líquido amarelo tóxico, de cheiro repelente. Não tivera tempo de se fingir morta, porque, certamente, a criatura tê-la-ia visto em amena cavaqueira com os seus recentes amigos.

Mas o bufo bufo eriçou-se, também, mostrando a sua pele verrugosa que segrega um tóxico veneno leitoso. Ela cheia de medo, ele um bocadinho irritado com a reação dela, ficaram naquela encenação, durante um minuto, perante a estupefação do pulgão e da mosca. Estranhamente, estes dois nunca se tinham cruzado com um sapo.

— Podem ficar descansados. Tenho uma coisa para fazer bem mais interessante do que comer três míseros insetos — coaxou o sapo, através do seu saco vocal externo. — Além disso, já me alimentei ao amanhecer.

— Comer-nos?! — zumbiu a mosca e gaguejou o pulgão.

O bufo bufo revirou as pupilas horizontais dos seus grandes olhos amarelos, enquanto a joaninha voltava à posição normal, ainda receosa.

— Ainda não perceberam que não sou um sapo verdadeiro? Sou um príncipe! Fui vítima do feitiço de uma bruxa malvada, que me transformou neste ser repelente — esclareceu o bufo bufo, bocejando com ar de superioridade, mas tapando a larga boca com o pé direito, como um humano faz com a mão. — Os outros sapos desconsideram-me e troçam de mim, quando contam esta história. Mas eu tenho a certeza de que sou um humano preso neste corpo. Por isso decidi abandonar este lugar e procurar o meu verdadeiro “eu”. Não tenho tempo para conversas. Vou à procura de uma princesa que me beije e me desencante.

— Isso é uma patetice — riu-se a mosca, embora mantendo uma distância segura da língua do sapo.

Carlota foi mais amável:

— Não conheço nenhuma princesa, mas, se quiseres, podes vir connosco. Vamos a Lisboa procurar o meu pai. Podemos ajudar-nos uns aos outros.

— Ajudarmo-nos? Em que é que três míseros insetos como vocês poderiam ajudar-me? — retorquiu, com altivez.

O pulgão ficou muito triste e até zangado, mas, como era tímido e cobarde, não fez nenhum comentário. Já a mosca, até se atrapalhou nos zumbidos:

— És um ingrato! Oferecemos-te ajuda e companhia e tu tratas-nos assim! Já tinha ouvido falar de sapos. És um animal noturno, mas a Carlota é um inseto diurno. Podia bem orientar-te. Ainda por cima, ofereceu-te ajuda, apesar das dificuldades que tem de voar por causa da meia asa.

— Meia asa? Que conversa é essa? — perguntou, intrigado, o sapo.

Mais uma vez, Carlota levantou a aba dura e mostrou a meia asa. O sapo engoliu em seco, porque se lembrou das dificuldades que tinha – ele, um príncipe! — em saltar com aquelas malditas membranas que lhe subiam até meio dos dedos dos pés. Mas não deu parte de fraco.

— Bem, parece que precisam da minha ajuda. Acompanho-vos, por enquanto.

Apesar do ar arrogante do sapo, os três insetos acharam graça à história do príncipe encantado e seguiram caminho, rindo e barafustando uns com os outros. A certa altura, começaram a ouvir barulho de buzinas e perceberam que o verde já não terminava o horizonte.

Nem tiveram tempo de trocar impressões. Uma sombra negra cobriu o sol, deixando-os debaixo de um manto de escuridão e terror.

 

Capítulo V

 

A andorinha pousara mesmo em frente dos quatro amigos, cortando-lhes o caminho. Encolheu as duas asas pontiagudas, pousou a cauda bifurcada e enterrou as pequenas patas na relva.

— Ora, ora! Que belo grupinho aqui vai! Uma verdadeira refeição gourmet! Como entrada um patê de mosca e pulgão, como prato principal sapo ao sauté e como sobremesa um pavê de joaninha.

Transidos de medo, os quatro encolhiam-se uns contra os outros. E foi, novamente, a joaninha quem tomou a dianteira:

— Não somos um “grupinho”. Somos um grupo de amigos. Eu vou para Lisboa procurar o meu pai. A mosca e o pulgão vão fazer-me companhia e realizarem o sonho de ver o mundo. Também procuramos uma princesa que beije o sapo para o desencantar de um feitiço e voltar a transformá-lo no verdadeiro príncipe que ele é.

— E para que precisas tu de companhia, joaninha? Chega aqui, perto do meu bico, para conversarmos melhor — chamou, melíflua, a andorinha.

A mosca interveio logo, claro:

— Nem penses! Tu até só caças em pleno voo. Ficas a saber que a Carlota precisa da nossa ajuda, porque só tem asa e meia e voa com muitas dificuldades. Mas nós protegemo-la!

— Asa e meia?! — exclamou, curiosa, a andorinha. — Mostra lá isso.

Carlota começava a fartar-se daquele ritual, mas lá levantou a aba dura, mostrando a meia asa.

A andorinha lembrou-se, imediatamente, do seu irmão, que quebrara uma asa, logo no primeiro voo, nem um mês de vida tinha. Por mais que toda a família contribuísse para a alimentação da avezinha, ela não sobrevivera. Apesar de já ter quatro anos, continuava a sentir, dentro dela, aquela revolta que a levava a afastar-se cada vez mais do seu bando, tornando-a cada vez menos aceite. Por isso, se comoveu com a meia asa da joaninha. Sem coragem para desanimar o estranho grupo – Lisboa? Uma princesa? Ver o mundo? —, a andorinha cedeu:

— Acho-vos graça, mas sozinhos não chegarão longe. Logo ali, à frente, no limite do parque, há uma estrada para atravessar e um longo passeio até chegar a outra zona verde. Se estão realmente dispostos a conseguirem o que pretendem, têm de saber que será uma jornada difícil. A mosca, o pulgão e a joaninha escondem-se debaixo das minhas penas e o sapo segue, à minha esquerda, para eu o esconder com o meu corpo. Tenho de tentar não voar.

— Por que havemos de nos esconder? — perguntou a joaninha.

— Porque vamos passar pelos humanos. Seremos um grupo estranho, inseto! Nós comemo-nos uns aos outros para sobrevivermos, mas os humanos matam-nos só porque lhes apetece. Faremos como eu disse!

E assim se compôs um grupo de solitários, carentes de proteção e amizade.

 

Capítulo VI

 

Os sons não enganavam. Ao invés do pipilar dos passarinhos, do coaxar das rãs, do chuá da água do rio, o ruído dos carros que passavam a uma velocidade estonteante, o vozear estridente dos humanos, a confusão de uma cidade. O verde desembocava, quase abruptamente, num espaço de cimento, com linhas brancas que delimitavam outros espaços que os humanos utilizavam para deixarem os seus meios de transporte. Também os insetos os têm: folhas de árvore para atravessarem largas poças de água, pequenos galhos, a “boleia” de outros animais. Mas estes eram enormes, faziam um barulho atroador e alguns libertavam um cheiro nauseabundo. Dentro deles, as pessoas gritavam, barafustavam e gesticulavam constantemente.

Carlota, curiosa com o novo mundo que a rodeava, acabou por se soltar um pouco e o seu voo desajeitado fê-la voltear até cair no chão a escassos milímetros de uma roda cinzenta gigantesca, que se aproximava a alta velocidade. Certamente a teria esborrachado, não fosse a prontidão do sapo que, esticando a língua o máximo que podia, a apanhou e atirou, novamente, para o dorso da andorinha. Mas, imediatamente se sentiu ele levantado no ar pela mão de um homem de boné de pala que, com ar de nojo, o atirou com violência para o longe. Desta vez, valeu-lhe a andorinha que, num voo rápido, se interpôs entre o bufo bufo e o muro que limitava o rio, impedindo que o amigo se esborrachasse.

Atordoados, a joaninha, a mosca e o pulgão agarravam-se com força às penas da andorinha, sempre de olhos postos no bufo bufo, que tentava passar despercebido ao lado do corpo da avezita. Apesar de todos estes cuidados, não conseguiram evitar os olhares de outros curiosos, enquanto atravessavam a estrada, pisando as riscas brancas do cimento. Não tinham percebido por que é que, a certa altura, os automóveis tinham parado e os humanos, que até aí tinham estado quietos a olhar para umas luzes num poste, tinham recomeçado a caminhar em frente. Não importava. Tinham aproveitado o momento.

Chegados ao outro lado, o passeio continuava, protegendo os transeuntes do rio por uma grade. Embora fosse um passeio largo, havia muitos humanos por ali, parados, em fila, como as andorinhas nos fios elétricos, junto de uns abrigos transparentes dos lados, com tetos prateados. Estes não lhes ligaram muita importância. Mesmo assim, os seus pequenos corpos tremiam de nervosismo e excitação.

Só acalmaram um pouco, quando entraram na velha estrada, em obras, que passava por trás de uma estação de caminho-de-ferro. Aí, a andorinha levantou voo, ainda que rasante, e o sapo acompanhou-a, saltando o mais depressa e o mais longe que podia.

O grupo precisou de toda a sua coragem — que de pouca passara a muita — e da ajuda de cada um. Mas, o esforço foi compensador. Pouco tempo depois, chegavam a um horizonte de sonho: água e verde. O rio, conhecido de todos, apresentava, no meio, algumas pequenas ilhas de areia. O som da água a saltar as pedras era um pouco diferente do da água sempre abundante a que estavam acostumados, mas reconfortou-os definitivamente. Em ambas as margens, a vegetação era densa, com clareiras e alguns lagos de água gelada e verde de lodo. Tinham voltado ao seu mundo. Sentiam-se em segurança.

A noite, ali, cairia mais depressa do que no espaço que habitavam anteriormente, por causa das copas das grandes árvores. Estavam exaustos das peripécias do dia e ainda se sobressaltavam a todo o instante. Foi até o sapo, noturno por natureza, que sugeriu que descansassem por ali para recuperarem forças. No entanto, foi da andorinha que veio a cruel realidade que emudeceu todos.

— Há algumas horas éramos desconhecidos e inimigos. Agora estamos reunidos por motivos vários. Somos amigos. Proponho que façamos um pacto: nunca nos comeremos uns aos outros.

Todos sorriram em sinal de concordância. Nem outra coisa lhes passaria pela cabeça.

Porém, a andorinha continuou:

— Mas, não se iludam. Todos precisamos de caçar e comer para sobrevivermos. Separamo-nos, durante um pouco, para que cada um cace, sem o constrangimento do olhar dos outros.

Nenhum levantou os olhos. Cada um se afastou do local onde se encontravam para, sozinhos, retornarem a uma realidade que tinham pensado conseguir modificar.

Assim, a joaninha colheu o néctar de algumas flores e roeu umas pontinhas de erva. O pulgão sorveu o pólen de uma capuchinha e a mosca conseguiu ir degustando o delicioso sumo de uma laranja, a mais doce por se encontrar no topo da laranjeira e apanhar muito sol. O sapo evitou joaninhas, moscas e pulgões e abasteceu o abdómen com outros insetos e alguns vermes. Mesmo assim, custou-lhe digeri-los. A andorinha sentia-se fraca. Em vez dos cerca de 1.500 insetos que costumava capturar, em pleno voo, um de cada vez, naquele dia, tivera de se contentar com a primeira refeição e agora, faminta, devorou, em dois ou três voos, uma quantidade enorme de insetos, tendo o cuidado de excluir joaninhas, moscas e pulgões. Mesmo assim, não foi uma digestão fácil.

Afinal, pouco tempo depois, reencontraram-se, no local de onde tinham partido para se alimentarem. Vinham cabisbaixos e com ar de culpa.

Foi Carlota quem teve a última palavra do dia:

— Hoje dormimos aqui, pertinho da água, abrigados por este choupo. Amanhã, decidiremos o que fazer.

Todos se foram acomodando e o sono tardava em chegar. Mas estavam tão cansados que acabaram por adormecer, embalados pelo ressonar do saco vocal do bufo bufo.

 

(Continua)

 

PC

Foto: "Choupal" Matilde Peça