Uma Família Irreverente - Conclusão

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Capítulo VII

 

De manhã, quando a primeira claridade os despertou, tacitamente, cada um voltou a afastar-se para se alimentar. Iam mergulhados no mesmo pensamento: aquele assunto teria de ser discutido, mais cedo ou mais tarde. Mal sabiam, naquele amanhecer, as deceções e as alegrias que ainda naquele dia os aguardavam.

De volta ao precário abrigo do chorão, sentiam-se, novamente, cheios de energia, embora muito baralhados.

— Preciso de saber qual é o caminho para Lisboa! Qual será o caminho para Lisboa? Como hei de encontrar o meu pai? — animava-se Carlota.

A mosca e o pulgão, mais uma vez em uníssono, bradavam:

— Nós ajudamos-te, nós ajudamos-te!

O bufo bufo coaxava:

— Eu vou também, já sabes. É nessa Lisboa que hei de encontrar a princesa que me vai beijar e transformar, novamente, em príncipe encantado.

— Calma — pediu a andorinha. — Não podemos partir às cegas. Precisamos de um plano. Por que não descansamos hoje, por aqui, fazemos um reconhecimento do local, pois pode vir a ser-nos útil, e partimos amanhã? Pode até ser que consigamos obter informações que nos ajudem.

Todos estranharam a atitude da andorinha. Não era ela a que menos se cansaria e a que mais mundo conhecia? Por que quereria, então, atrasar a partida? E porquê aquele ar misterioso de quem cala alguma coisa que só ela sabe?

Seguiram-na como podiam. O sapo em pulos longos e espaçados, o pulgão em pulinhos curtos e rápidos, a joaninha esvoaçando de lado e a mosca brincando no ar, enchendo-o de acrobacias. A brincadeira tomou conta do grupo. Falavam sem parar, empurravam-se uns aos outros, fingiam que se comiam — era, também, uma forma de desmistificar o assunto que os afligia — e até a andorinha chegou a levar o sapo às costas, num voo vertiginoso que o fez enjoar, apesar de rebolar a rir, quando chegou ao chão.

A ave ia contando:

— Esta mata chama-se Choupal. Nasceu há mais de dois séculos para evitar que as águas do rio inundassem os campos agrícolas que o rodeavam. Foi crescendo, crescendo até chegar ao que é hoje: mais de dois quilómetros e cerca de oitenta hectares! Muitos humanos vêm para aqui fazer duas coisas estranhíssimas: andar ao acaso…e correr!

Nenhum dos outros perguntou o que eram dois séculos nem oitenta hectares. A andorinha parecia saber tantas coisas que eles ignoravam!

— As andorinhas podem viver até vinte anos e dar muitas voltas ao mundo. Além disso, temos o hábito de contar histórias umas às outras, fazendo-as passar de geração em geração — explicou a ave, orgulhosa dos seus conhecimentos.

A certa altura, começaram a ouvir uma algazarra de criançada. Mais uma vez, foi a andorinha quem os elucidou:

— São as crianças da Casa da Mata. A casa esteve em ruínas durante muito tempo. Um dia vieram uns humanos arranjá-la e deixaram-na mais bonita. Como nós fazemos com os nossos abrigos. Depois começaram a aparecer grupos de crianças das escolas, com as adultas que cuidam deles. Andam por aí a brincar. Devem gostar muito, porque correm, gritam, riem…

Aproximaram-se com cuidado e por ali ficaram a ouvir-lhes as conversas. O grupinho de seis miúdos que estava mais perto deles era composto, também, por uma adulta.

— Hoje vamos ler a história do príncipe encantado que uma bruxa transformou em sapo.

O bufo bufo empertigou-se, ao ouvir falar de si. Também os amigos se esticaram para ouvir melhor.

— Não sabia que os humanos me conheciam! A minha família falava deste assunto, rindo-se. Afinal, sou famoso! — segredou o sapo.

A andorinha queria tirá-los dali, mas pensou que chamaria a atenção das crianças e sabia-se lá o que poderia acontecer. De qualquer maneira, algum dia eles teriam de saber a verdade…

A educadora foi lendo a história, deixando o sapo e os amigos bastante emocionados. No final, os meninos bateram palmas de entusiasmo. O sapo estava todo inchado de orgulho.

Logo um dos rapazitos gargalhou:

— Quem me dera ser um príncipe encantado transformado em sapo! Assim não teria de ir à escola e viveria sempre dentro de água!

A educadora advertiu-o:

— Não sejas tonto. Não existem bruxas nem príncipes encantados transformados em sapos. Um sapo é só um sapo.

O engraçadinho continuou a rir:

— Eu sei que isto é só uma história inventada para crianças!

— Mesmo que fosse verdade, eu nunnnnnca beijaria um sapo! É um bicho asqueroso, peganhento! Que nojo! — acrescentou a loirita das tranças, fingindo um vómito.

A brincadeira de outros miúdos, subindo às árvores, levou estes a levantarem-se e correrem jardim afora.

Por esta altura, Carlota, a mosca e o pulgão fitavam a copa de uma árvore, de olhos muito abertos, tentando não deixar escapar as lágrimas. A andorinha mostrava a sua tristeza e embaraço raspando uma pata nas folhas ali caídas. O sapo foi o primeiro a virar costas e, tropeçando aqui e ali, como um humano embriagado, vagueou pelas imediações, sem direção que se percebesse. Seguiam-no os quatro amigos em silêncio. Largos minutos passados naquele caminhar errante, viram-se na berma de um pequeno e silencioso lago. Pararam como se fossem um só e juntaram-se numa roda. Nenhum se atrevia a quebrar o silêncio. Foi a andorinha que primeiro aclarou a garganta, para desembargar a voz, como tantas vezes ouvira os humanos fazerem:

— É verdade, sapo. Não és um príncipe encantado. Isso não existe. És só um sapo. Vais ter de ser forte para enfrentares esta deceção. Mas, também terás de ser forte para ajudares a Carlota.

A joaninha pensou que era bom que já estivesse no chão, caso contrário nem a sua asa e meia a seguraria no ar. Então, agora ela? O que se passaria? Que deceção a esperava?

— Carlota, nunca encontraríamos o teu pai no meio dos milhões de joaninhas que existem neste país. Além disso, os machos da tua espécie morrem muito mais cedo do que as fêmeas, portanto o teu pai já pode ter morrido. A cantilena que ouviste das crianças, e me contaste pelo caminho, é só uma brincadeira. O teu pai não está em Lisboa — informou a andorinha, olhando carinhosamente para a joaninha. — Portanto, também tu, pulgão, e tu, mosca, não precisam de continuar a acompanhar a nossa amiga. Esta viagem foi em vão. Não vos contei isto antes, porque não queria desiludir-vos. É melhor despedirmo-nos já e voltar cada um à sua vida.

As pintinhas pretas da carapaça da joaninha pareceram preencher todo o vermelho que se ia desvanecendo, tal era a sua tristeza.

— Mas eu treinei tanto o meu voo…e foi tão difícil chegar aqui… — sussurrou Carlota, de cabeça baixa.

O sapo, que ainda não se tinha refeito do choque, empurrou um pé para debaixo da amiga, para que ela pudesse aconchegar-se a si. A mosca e o pulgão aproximaram-se mais, fechando a roda e a andorinha abriu as asas como que a protegê-los. Durante uns minutos, os cinco amigos permaneceram assim, juntos numa mesma dor. Tinham-se reunido em torno de sonhos que, sabiam, agora, não se realizariam. Abandonaram-se à deceção e à falta de rumo das suas vidas.

A andorinha esperou, pacientemente, que cada um sofresse a sua dor e a dos outros. Acabou por baixar as asas e ia afastar-se para não tornar a despedida mais difícil. Mas, estacou ao ouvir a joaninha:

— Então é assim? Vais abandonar-nos?

— Eu já expliquei… — tentou dizer a andorinha.

Carlota prosseguiu, determinada:

— Sim, sim, sabemos muito bem o que explicaste. Já percebemos que eu não encontrarei o meu pai, que a mosca e o pulgão não se manterão comigo nem correrão mundo e que o sapo não se transformará em príncipe. Os nossos sonhos por água abaixo! Tentámos, mas não conseguimos. Ou não será bem assim?

Todos estavam suspensos das palavras da joaninha.

— O meu pai, a princesa, o desejo de viajar e a devoção do pulgão e da mosca, a tua revolta com o teu bando…tudo isto não passava de um pretexto para encontrarmos quem nos compreendesse e aceitasse como somos. Olhem à nossa volta. O que é que temos aqui? Uma família! Nenhum de nós se quer separar dos outros. Proponho que nos mantenhamos juntos, durante as nossas curtas vidas, que nos protejamos, que sejamos sempre amigos! E que esta mata seja a nossa casa!

O pulgão saltitou para a direita da joaninha, a mosca esvoaçou para a sua esquerda e o sapo aproximou-se devagar, para não derrubar os amigos. Formavam uma frente unida que enterneceu a andorinha. Então, percebeu que não conseguiria abandonar os amigos.

— Bem, não vos contei que, para lá da Casa da Mata, há um jardim de plantas aromáticas e medicinais, um borboletário, aparelhos de elevação de água e cavalos! Também há muitas zonas desconhecidas dos humanos. Talvez…

O pulgão, vencendo a sua timidez e cobardia, libertou, finalmente, a coragem que a amizade lhe tinha trazido:

— Está decidido! Esta noite ficamos por aqui. O sapo ajeita-se no lago, tu, andorinha, naquele abrigo de aves do plátano, que parece abandonado, e eu, a mosca e a Carlota nestas ervas. Amanhã logo vemos. O que importa é mantermo-nos juntos!

O sapo chegou-se à frente e colocou um pé entre todos.

— Vi os humanos fazerem isto. É um pacto de amizade.

A andorinha colocou uma das suas pequenas patas em cima da do sapo e a mosca, o pulgão e Carlota pousaram, também, as suas minúsculas patinhas umas em cima das outras.

Naquela noite, adormeceram exaustos da conversa sobre o futuro. Mas, felizes, porque certos de que a manhã seguinte assinalaria o início de muitas, novas e extraordinárias aventuras para os cinco amigos!

 

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