AS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO SÃO COVEIRAS DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

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Eu não posso saber se os meus concidadãos sentiram o que eu senti, quando estive longo tempo a aperceber-me do funcionamento da Comissão Parlamentar de Inquérito.

Para mim, naqueles moldes, tratou-se e tratar-se-á sempre de um espectáculo vergonhoso e deplorável. O que ali se pretende é vexar e minimizar o Poder, reduzindo-o à sua ínfima condição.

Aos interrogantes não importa se o interrogado é inocente ou culpado, e ainda importa menos qual o grau ou as modalidades da culpa suposta. Importa, isso sim, arrastar pela lama o carácter da "vítima" , através da demonstração de um subentendido prévio , que é o da culpa , dada como existente ainda antes de qualquer interrogatório.

Isto converte o interrogatório num massacre e o interrogado num desprezível criminoso.

Eu ouvi atribuir a um ministro palavras e factos que lhe não eram aplicáveis. E ouvi e vi fazer tudo isto num tom enfático e cheio de desdém.: E dei-me conta de que um roubo típico de um equipamento oficial nem sequer teve a benesse de uma só observação!

O que menos importa para os interrogadores é o apuramento da Verdade. O que mais importa para eles é a comprovação, feita com base em ginásticas verbais, de que o governo é uma corja, um bando inqualificável, uma matilha sabuja, impura e sem a menor altura ética.

A Comissão Parlamentar de Inquérito opera a inversão daquilo que sempre foi uma regra de ouro para a Filosofia Política, e que é esta: para que um qualquer regime tenha um vago amanhã, é necessário que o poder não desça à condição de ser apresentado como um lixo, como um esfregão de casas de banho públicas. Se não houver este cuidado, o regime afunda-se, avilta-se, perde força e crédito junto da opinião pública.

O que os senhores da Comissão ainda não foram capazes de entender é que eles já estão a ser infalivelmente arrastados para a mesma fossa de repúdio e de indignação com que a opinião pública os avalia A TODOS.

Porque assim é, a grande vitória política do funcionamento das Comissões de Inquérito feitas naqueles moldes, são todos os partidos, todas as facções e todas as opiniões que se identificarem e colocarem fora do sistema, que o mesmo é dizer fora do regime. Não tenho a mais pequena dúvida de que o "Chega" está a averbar todos os dias grandes aditamentos à sua percentagem de votos. E isto porquê? Porque cada sessão da Comissão Parlamentar de Inquérito comprova, nas palavras sem pejo que lá se proferem, que este regime não presta, que os homens e mulheres que o servem são todos corruptos, que todos eles pensam em tudo menos no Bem comum.

A ilusão dos interrogadores consiste em imaginarem que eles próprios estão imunes, furtando-se à razia cívica do espectáculo. O que acontece é que o homem e mulher das ruas e mercados, o homem e mulher comum, irá fazer o mais vulgar juízo de generalidade e concluirá: "Eles são TODOS IGUAIS; esta gente não presta. Este regime não nos serve ". Ou seja, o homem comum e a mulher comum irão interiorizar exactamente a mesma coisa que o Senhor André Ventura difunda largamente na sua propaganda.

A Comissão Parlamentar de Inquérito permite e encoraja que por lá sejam cevadas todas as pequenas frustrações dos deputados. Os interrogados são tratados sem a menor deferência, os interrogadores fazem o mesmo papel dos esbirros da Santa Inquisição de outrora. Ressumam as exalações do ressentimento e da emulação do agente político intermédio, que olha para as figuras de topo com um misto de inveja e de espírito de desforra. É como se demonstrassem esta interioridade psicológica: Eu sou só Deputado e tu já estás Ministro, mas espera aí que eu já te descomponho a imagem com pazadas de lodo.

Há em tudo isto uma curiosidade adicional, que se salda no seguinte: toda esta saturnal em desfavor do regime, do regime DESTA democracia representativa, é acolhida, encorajada e estimulada pelo actual Presidente da República, como polichinelo de serviço, e como a mais populista figura que hoje se espaneja entre nós.

O Governo Costa conclamou em seu desfavor todos os fantasmas favoráveis a uma liquidação que antevemos próxima. Não é que o governo de António Costa seja pior ou menos eficaz, menos certo ou mais laxista. Nada disto é provável e comprovável, porque os portugueses poderão aprender à sua custa que tudo aquilo que hoje se referencia como danoso ou insuportável será igual a tudo aquilo que foi feito e se voltará a fazer em todos os elencos políticos, de quaisquer cores e emblemas, sejam eles quais forem.

 Era até por isso que os Antigos teóricos da Filosofia Política e da Filosofia do Direito falavam em "segredos de Estado" e em "razão de Estado". Há e sempre haverá mandantes e mandados, os que devem reger e os que devem obedecer. A classe política actual acabou de adoptar a mesma exigência indefensável que a plebe, os mandados, alimentam, como fruto da sua cegueira do que é o acto de mandar, e que é esta : TUDO deve ser conhecido, ou seja, o "vulgum pecus" goza da prerrogativa suicidária de tudo lhe ser oferecido, como o pitéu da má língua para alimentar as "comadres" e os proxenetas de todas as ruas e de todas as praças.

Quando a governação de Costa, empurrada por toda a vozearia de todos os órgãos de comunicação, desabar, uma mesma coisa se irá manter, como o factor eterno - e doravante inquestionável do nosso "bota-abaixo" - isso serão as Comissões Parlamentares de Inquérito, iguais à que eu vi funcionar. Ali, tudo é julgado pela rasoira do que é mais reles, do que se apresenta como mais sujo, do que se arvora como mais vulgar.

Todos os partidos ficaram doravante a saber que as Comissões Parlamentares de Inquérito, como instrumentos demagógicos e plebiscitários desta Republiqueta, estão ali para cumprirem a sua missão vocacional: abrirem a vaza do pior que se acoita na alma humana, soltarem os vapores mefíticos e letais do que há de mais desastroso no contencioso político, açularem os cães raivosos da mais rasteira idiossincrasia política.

Depois é só aguardar que isto tudo venha a acabar como se prevê. O que se prevê é a liquidação da fórmula da democracia representativa.

É de imaginar que, nesse momento, todos venham dizer que a culpa não foi deles ...

Amadeu Homem