Coisa do outro mundo
A dor na cabeça foi diferente de todas as outras; chegou de repente, muito intensa, turvou-lhe a visão, perdeu o equilíbrio, começou a ouvir as vozes ao longe, cada vez mais longe. Seria a morte? Devia ser a morte. Lembrou-se de duas coisas: a visão luminosa intensa seguida de uma grande paz interior e de os factos mais importantes da vida passarem num instante pela memória. Lembrou-se. Era assim que descreviam o momento da morte.
Não viu luz intensa nenhuma. A vida não lhe passou pela memória como se fosse um filme. Mas o mundo tinha acabado para ele. Até a dor deixou de o incomodar. Gostava de poder voltar, só para dizer que a morte não era nada daquilo que lhe tinham contado toda a vida. Sentiu o incómodo de se ter esquecido de dizer à mulher a nova combinação do cofre onde guardavam as jóias, de não ter telefonado à irmã para lhe confessar que ela fora sempre o grande enlevo da sua vida, de ter saído de casa sem haver beijado a filha, de não ter perdoado ao grande amigo a falcatrua na empresa! Será que ia encontrar os pais falecidos há muito? E a namorada que, há sessenta anos, abandonara para casar com a mãe da sua filha?
Não sabe quanto tempo se passou, mas, até os incómodos foram diminuindo de intensidade. Ficou um silêncio absoluto. Afinal, morrer não era nem difícil nem era nada como se dizia!...
— Está a mexer as pálpebras. Senhora enfermeira, pode desligar a máquina… Depois de seis meses de coma, conseguimos recuperá-lo! Estamos de parabéns!
Merda! Afinal, não morrera! Ia voltar tudo à mesma!
Lá fora, a mulher beijava apaixonadamente o seu melhor amigo.
Luís Alves de Fraga