Gago Coutinho e Sacadura Cabral
No dia 17 de Junho deste ano, celebraram-se os primeiros 100 anos, de um dos feitos mais determinantes, consequentes e por isso mesmo, importantíssimos, da nossa longa História, de mais de oitocentos anos. Numa época que em Portugal, só duas ou três datas é que são comemoradas e as quais não conseguem reunir o consenso da nação, deveremos ter a preocupação e o interesse em celebrarmos os feitos que a todos nós, os portugueses, nos dizem respeito e que concentram unanimidade.
Um desses feitos e um desses momentos, prende-se com a epopeia da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, ligando Lisboa ao Rio de Janeiro, realizada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Efectivamente, estes dois heróis lusos não foram os primeiros pilotos aviadores a fazer uma travessia aérea cruzando o Atlântico mas ninguém o fez nas condições em que estas duas enormes figuras o fizeram!
Quando o oficial de marinha Artur Sacadura Cabral concebeu este plano, tinha como objectivo provar que o rigor da navegação marítima poderia aplicar-se à navegação aérea e desenvolver o avião, meio utilizado na Primeira Grande Guerra Mundial, de maneira a poder ser usado, não só em teatro de guerra como posteriormente, na actividade comercial.
O conhecimento e a proximidade conseguidos com o geógrafo Carlos Gago Coutinho, ambos autores de um trabalho altamente meritório e de grande dimensão desenvolvido, nas antigas colónias portuguesas de Angola e Moçambique, levou ao convite feito a este último, a interessar-se pela navegação aérea. Às competência e coragem do primeiro, aliou-se a acção de alguém com uma obra de mérito inquestionável e superlativo, nomeadamente no continente africano, enquanto geodeta.
Quando Sacadura Cabral decidiu apresentar ao governo de então, o seu projecto, impunha-se-lhe uma grande questão. Ou faria viajar consigo um segundo piloto, Ortins
de Bettencourt, reduzindo o seu próprio desgaste, enquanto piloto, ou faria navegar com
ele, um geógrafo de reconhecidíssimo mérito. Optou pela segunda possibilidade. Ele seria o piloto aviador e Gago Coutinho o navegador. Este geógrafo vai aperfeiçoar o sextante horizontal artificial a que adapta uma bolha de nível e que funciona como astrolábio aéreo, permitindo ao medir rigorosamente a altura dos astros, conferir uma localização precisa do lugar em que se encontravam. Serviu-se igualmente do plaqué de abatimento ou corrector de rumos que permitia corrigir os desvios provocados pela acção dos ventos. Aliás a viagem não tolerava pequenos desvios sequer, já que as limitações de combustível constituíam um problema de altíssimo risco.
Com todos estes constrangimentos, a viagem acabou por demorar muito mais, do que era expectável, três meses, mas chegou ao seu fim, coroada de enormíssimo sucesso. O rigor científico de que esteve imbuída esta viagem, transformaram-na num acto de navegação astronómica, com uma precisão nunca antes conseguida!...
Quando o americano Albert Cushing Read realizou a travessia aérea de Long Beach para Lisboa, fê-lo em condições muito mais vantajosas, tendo como suporte um corredor de dezenas de navios que iam facilitando imenso, na orientação do percurso.
Quando, também anteriormente, os britânicos Alcock e Browwn ligaram, através de percursos de menor dimensão, as partes setentrionais do Atlântico Norte, fizeram-no de uma forma que estava assegurada a chegada a qualquer lugar, e onde o risco era incomparavelmente menor. Portanto estão desfeitas duas inverdades e ideias injustas quando se atribui à viagem portuguesa, um processo mimético e inspirada nessas viagens anteriores. Esta epopeia portuguesa, de risco, dimensão e rigor muito superiores, foi algo somente comparável a andar na corda sem rede!
Não é minimamente verdade que elas fossem os protótipo e inspiração a seguir por estes dois heróis portugueses. Na véspera de Read terminar a sua viagem, em Lisboa, Sacadura
Cabral entregou ao governo português, o projecto, por ele amadurecido, havia muito tempo. Algo que se iniciou, após o terminus da I Grande Guerra Mundial. Projecto que teve por antagonistas, não só as vozes discordantes dos tradicionais velhos do Restelo mas igualmente o contexto político-económico delicadíssimo, em Portugal, à época. O facto de se atribuir a razão deste enorme desafio, à comemoração do primeiro centenário
da independência do Brasil, não tem qualquer sentido, apesar da coincidência das datas e de todos os benefícios histórico-diplomáticos, daí retirados, no aprofundamento da amizade entre dois povos irmãos. O projecto estava delineado havia muito tempo, com umas vontade e determinação férreas, e não me parece verosímil que tal aventura se prendesse especialmente com tal efeméride. No ano de 1921, fez-se um primeiro ensaio
para verificar da qualidade e do sucesso ou não, da metodologia e dos instrumentos utilizados, numa primeira viagem Lisboa Funchal. Experimentação que decorreu com grande êxito. Estes excelentes resultados fizeram com que o plaqué de abatimento tenha sido exibido, nesse mesmo ano, em Paris, no Congresso Internacional de Navegação Aérea. Foi então no ano seguinte, a 30 de Abril, numa semana propícia ao aproveitamento dos ventos alísios, que partiu da Praia do Restelo, muito perto da Torre de Belém, donde saiu Vasco da Gama para a Índia, a aeronave que haveria de ser responsável por um dos maiores feitos da humanidade.
O Lusitânia começou por fazer uma primeira escalada no arquipélago das Canárias, nomeadamente para fazer abastecimento. Após a descolagem tomou o rumo do arquipélago de Cabo Verde.
Durante a viagem aperceberam-se que a aeronave de motor Rolls Royce apresentava um
consumo bastante superior ao apresentado no contrato de venda. Era demasiadamente tarde, o risco tornou-se ainda maior do que era previsível. Todavia a viagem continuou até aos Penedos de S., Pedro e de S. Paulo. É aqui que uma vaga violenta destruiu um dos flutuadores do Lusitânia deixando-o incapaz de continuar a saga. São então os pilotos recolhidos pela embarcação República, e de Lisboa chegava uma outra aeronave o Pátria Portugal, nome nunca registado, que veio a avariar, nessas paragens, ainda..
Este novo contratempo faz com que chegasse de Lisboa um terceiro hidrovião, o Santa
Cruz. É este último que vai permitir chegar ao Recife, a Porto Seguro, a São Salvador
da Baía, a Vitória e finalmente à Baía da Guanabara e ao Rio de Janeiro. Aí a recepção foi apoteótica, por uma população brasileira em delírio!...
Perante a dimensão de tamanha gesta, pergunto. - Que país é o nosso que permite que um feito desta grandiosidade, à escala da História global, seja simplesmente omitido nos livros de História, que não seja tratado nas aulas, que os jovens não façam a mínima ideia de quem foram estes heróis?
Muito justamente, em Lisboa, há uma Avenida Gago Coutinho; como se explica então que não se atribua o nome de Sacadura abral ao aeroporto de Lisboa? Apetece-me parafrasear Blaise Pascal «Há razões do coração que a própria razão desconhece». Ao invés, repare-se nos imensos tempo e espaço que são dedicados a pessoas que o mundo mal conhece, e será que algum dia vai conhecer?
Apesar de todos estes atropelos e injustiças feitos à verdadeira História de Portugal e à forma como a História pátria é apresentada, de acordo com a agenda política em curso; eu estou seguro que Artur Sacadura Cabral e Carlos Gago Coutinho pelo seu «feito valeroso se vão da lei da morte libertando!...»
Rui Estrela