Meu pai não é meu capitão

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O meu pai quer a bandeira nacional sobre o caixão mas nunca lha enviariam a tempo do enterro. O formulário do cartão de ex-combatente foi submetido há mais de um ano e ainda não lho mandaram, e um cartão é só um pedaço de pouca consideração enviado pelo correio. Como a bandeira nunca chegaria a tempo, o meu pai comprou-a e apontou-me o sítio onde a guardou: está aqui para quando for preciso.

 

Quando for preciso não é amanhã, mas certamente é um dia. Com setenta e cinco anos, esse dia já perdeu muitos anos. Esteve mais longe, a morte do meu pai. Como esteve mais longe a morte de quem se revê, ao fim de cinquenta anos, nos encontros de batalhão.

 

No outro dia fui a um desses encontros conhecer o capitão que o meu pai foi. Mais novo do que eu, mais intempestivo, mais disciplinador, e com mais vidas agarradas às suas mãos: assim surgia o capitão - quantas vidas foram, meu capitão?; lembra-se dos dembos, meu capitão?; o alferes tal morreu, meu capitão; o enfermeiro tal mais valia ter morrido, meu capitão; veja estas fotos, meu capitão.

 

As fotos também me dizem respeito porque nelas aparece um homem com quem me pareço. À imagem do qual tentaram moldar-me. E numa ou noutra, quais pérolas do mato, surgem as cabeças loiras das crianças que eram as minhas irmãs. E aquela mulher semelhante à minha mãe.

 

Enquanto folheava os álbuns de um alferes - homem sábio o suficiente para ser alegre -, sentou-se comigo uma filha de alguém. Posso ver? E vimos os dois, eu sabendo onde encontrar os sósias da minha família, ela em busca do duplo do pai, que pertencera à mesma companhia do meu. Nem ela, nem eu, nem ninguém dos que acompanhavam os veteranos visitava na primeira pessoa as terras da lembrança.

 

E depois houve o toque a mortos. Fechámos os álbuns, levantámo-nos e ficámos com as costas muito mais direitas do que as costas dos velhos. Mas eles é que estavam em sentido. Claro que choravam como só os homens choram: imagino eu, choravam pelos que morreram, pelos que não morreram, por esse passado insanável, e também pelo presente. Tantos homens presentes faziam demasiado passado, é como se todos tivessem ficado lá.

 

No entanto, foi quando foi, há cinquenta anos. E, entretanto, nasceram filhos como eu e netos também, nós que não sabemos que a guerra nem em meio século acaba.

 

Um dos veteranos cacimbou em Angola e assim prosseguiu pela vida. Estava bêbado, berrava, e os camaradas punham-no debaixo do braço para o conter: mas tanto ele como os outros ficaram com África no apelido.

 

Isto não é para ser lírico, tanto mais que a bandeira nunca chegaria a tempo, como a tempo não chega o cartão de ex-combatente. Morto, o meu pai ficaria quase cacimbado, sem um país que o pusesse debaixo do braço.

Afonso Reis Cabral

Escritor

(Em JN on line)

 

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)