O vulcão da Urzelina (Ilha de S. Jorge)

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 Cratera do vulcão da Urzelina, sítio localmente conhecido por "Bocas do Fogo da Urzelina"

 

O vulcão da Urzelina (Ilha de S. Jorge, 1808), descrito por João Duarte de Sousa ("Ilha de S. Jorge - Apontamentos historicos e discrição topographica", Angra, 1897):

 

"Na noite amanhecendo para o Domingo do Bom Pastor, primeiro dia do mez de Maio do presente anno de 1808, tremeu a terra tão frequentemente que se contavam oito tremores por hora, e d’estes foi um sobre a madrugada tão grande, que fez levantar o povo das camas (1.). No mesmo dia, estando já parte do povo na igreja deprecando a Deus nosso pai, houve outro abalo tão forte que fez fugir todo o povo da egreja, das 11 para as 12 do mesmo dia houve outro tremor, e juntamente um estrondo tão grande que a todos amortiso, (2.), e de repente se vio levantar uma grande nuvem de fumo sobre o mais alto monte da freguezia da Urzelina, no pico d’ António José de Sequeira, e bem defronte da egreja de S. Matheus cuja planta e centro da freguesia era o mais agradável da ilha, e por isso mesmo muito frequentado de muitos sujeitos bons e maus de todas as ilhas, e em breve tempo engrossou e subindo ao mais alto ceo fez arco sobre parte da freguezia das Manadas e da Urzelina, indicando um terrível castigo já mostrando nas redobradas e negras nuvens uns incumbrados montes, umas medonhas furnas.Da bocca daquele vulcão saíam estrondos tão fortes e medonhos sem intervalo que convidavam aos habitantes d’esta ilha para Juízo.

Correu todo o povo a deprecar a Deos, porém logo o povo da freguezia da Urzelina se assustou deixando o seu vigário o rev. José António de Barcellos só no adro da sua igreja, e logo no mesmo dia choveu tanta areia de tarde que ficaram as casas chamadas do mato cobertas de areia e os campos d’ahi para cima em parte ficaram com altura de 7 palmos, e as vinhas dos Castelletes até à ermida de Santa Rita, da freguezia das Manadas, ficaram cravadas e as casas quasi abatidas com o pezo, sahindo immediatamente línguas de fogo do centro que chegavam aos ceos, deitando pedras ignitas de 8 palmos, em distância dum quarto de legoa, outras de 16 palmos em quadro e outras menores, subindo à mesma altura cahiam como densos chuveiros.Chegou a triste noite, então é que desfaleceram os habitantes desta ilha vendo todo o fogo e pedras ignitas, que sahiam como coriscos e quase que pareciam cair sobre os povos, e as vidraças das egrejas pareciam quebrarem-se aos eccos d’aquelle pregoeiro que nos ameaçava de morte.Até à terça feira, 3 do mesmo mez, rebentou o fogo em 7 logares, ficando a bocca ou vulcão perto da Ribeira do Arieiro, em cuja tarde abrandou o fogo: e na madrugada da quarta-feira, 4 do mesmo mez, arrebentou o fogo entre as Ribeiras, acima da fonte da Fajã, e da mesma sorte fazendo nuvem de pó de enxofre e terra que parecia arder todo aquelle logar. Logo fez procissão o vigario da Urzelina para a parte da Fajã com o Senhor Santo Christo e Senhora das Dôres e a poucos passos encontrou-se com o padre José de Sousa Machado, que trazia em procissão a Senhora da Encarnação acompanhado de várias pessoas. mas quasi suffocadas do muito pó enxofrado que estava cahindo. reunidos àquela procissão algum tanto animados, chegaram à ermida da Senhora do Desterro, ainda, que com muito trabalho porque do cruzeiro para cima cahia muita terra sulfúrea e tão pegajosa que muitas árvores cahiram com o peso d’ella e o fétido entontava aos viajantes.

Passados mais 7 dias rebentou o fogo nas areias da freguezia de Santo Amaro, onde abrindo duas bocas vomitava fogo à maneira de duas grandes ribeiras de matéria fluida, e com tanta força que no segundo dia se achava a mais de um moio de campo de mistério que encaminhando-se às casas fez pôr parte do povo em fugida, o vigário, o rev. Amaro Pereira de Lemos, esteve falto dos sentidos e a irmã, D. Anna Maria de Lemos, esteve douda.O vigário das Velas e ouvidor, o rev. António Machado Teixeira, temendo fosse o fogo à villa mandou deitar pregão para que se retirassem, e que mandava o Sacramento para a Beira e d’aqui resultou um levante que se não pode explicar.As freiras foram para a igreja de Rosais; o ouvidor e outros clérigos para o Faial, o doutor juiz de fóra e outros para o Pico e o mais povo de quasi toda a villa foi para a Beira e Rosaes. Este levante foi sem maior necessidade, por que no dia em que o fizeram foram ver o fogo que já pouco corria e só por dentro da ribeira.O alto da serra por onde o dito fogo passou ficou abatido e em grotas formidáveis, os caminhos quebrados de forma que não passavam carros nem gente por parte, as fontes secas.Poucos dias depois retrocedeu ao primeiro logar em que tinha rebentado, defronte da igreja da Urzelina, com a mesma força que dantes, e perseverou doze dias, em que foram continuas as súplicas a Deus e por não sermos ouvidos do Senhor, por serem as culpas em maior número que as suas misericórdias, continuou o mesmo flagello. sahindo do vulcão (que dizem ter bocca em circunferência de um moio de campo) muitas areias, que arruinavam parte dos campos da referida freguezia de São Matheus e das mais circunvizinhanças. e chegou a cahir na ponta do Pico, em Angra e São Miguel, e para a parte da villa não cahio porque os ventos sempre cursaram pelo nor-noroeste.N’este tempo todo o povo da Urzelina se ausentou desamparando todos as suas moradas, uns para as Manadas, outros para a Calheta.outros para Rosais e uns para Angra, isto o povo da Urzelina, ficando só o reverendo vigário no adro.

Observou-se que em quanto a maré enchia aquelle vulcão embravecia mais e deitava com mais força pedras mármores grandes, umas das gerais eram muito pretas e pesadas e feriam lume, e outras à maneira de vergas, de lagens e outras redondas, umas muito brancas e partidas reluziam pelo muito salitre que tinham.Em uma noite estando o vigário da Urzelina em guarda de sua igreja, sendo já 11 horas e meia, pegou a observar umas ribeiras de fogo, que vinham correndo pelo monte abaixo, e tocando a fogo apenas acudiram 6 ou 8 pessoas, que acompanharam o Santíssimo para a ermida do Senhor Jesus, para onde na mesma noite fez trasladar todas as imagens, vasos sagrados e vestes sacerdotais. Entraram logo a observar que os campos circunvizinhos ao dito monte se iam incendiando e levantando-se pedras como montes, que corriam ardentes até à planície das vinhas que faziam pasmar a quem tal castigo via.Em 17 do dito mez de maio, vendo o vigário das Manadas, o reverendo Jorge de Mattos Pereira, que o da Urzelina se achava estrompado e com a sua gente dispersa veio com parte dos seus fregueses à igreja da dita freguezia de S. Matheus para salvar o que podesse da dita egreja, o que assim fez, e estando trabalhando na mesma de repente se levantou um tufão de fogo ou vulcão e introduzindo-se nas terras lavradas levantou todos aquelles campos até abaixo às vinhas com todas as árvores e bardos, fazendo-se uma medonha e ardente nuvem e correndo até abaixo da igreja queimou trinta e tantas pessoas na egreja e nos campos, e vindo para a parte da ermida do Senhor Santo Christo tomou a luz ao sol de sorte que parecia uma tremenda noite (3.) e pensando o dito vigário da Urzelina que era a última hora de vida já trémulo tratava de consumir o Sacramento, mas em quanto se aprontou entrou a divisar uma pequena luz e esperando um pouco, vendo que ia esclariando, não quiz consumir o Sacramento e saindo a ermida logo se encontrou com o vigário das Manadas e um clérigo queimados e todas as mais pessoas que com elles entraram, uns por menos molestos foram para a sua casa e outros ficaram na referida ermida e casas vizinhas, por não poderem ir para as suas, vindo uns com os couros das mãos e pés pendurados, outros tão inchados e pretos que se não conheciam, outros com as pernas quebradas, e alguns espirando, todos pedindo Sacramentos, e apenas os receberam alguns logo expiraram (4.). E vendo o rev. vigário que o fogo era cada vez mais e que se ia aproximando à dita ermida levou o divino Sacramento para as Manadas para a ermida de Santa Rita, em cuja tarde administrou os sacramentos a alguns dos seus fregueses, que ali se achavam queimados e a outros d’aquella freguezia das Manadas com licença do rev. vigário.No dia seguinte consumiu o Sacramento o rev. vigário da Urzelina e a toda a pressa passou à parte do Norte por onde veio para o logar da Ribeira do Nabo para accudir a alguns dos seus freguezes, que para o dito logar se tinham passado queimados, isto por já não poder passar pelo sul pelos tufões de fogo que saíam da bocca d’onde corriam caudalosas ribeiras de fogo em matérias fluidas, que já chegavam quasi ao mar.Agora se acha o dito vigário com os sacramentos na ermida de Nossa Senhora da Encarnação para onde voltaram os que andavam dispersos.

Até ao dia 16 do dito mez eis aqui o que se observou, apparecendo na falda do monte que se formou de pedra e areia, o mais alto da ilha, uma abertura d’onde sahia uma caudalosa ribeira de fogo que chegou a dividir-se em cinco, e transbordando todas arrasaram os principaes campos e sessenta e sete casas de morada, toda a canada dos Abreus até à canada onde o padre Bartholomeu Luiz morava, com vinhas e terras, ficou em mysterio (5.), e vindo estas ribeiras ao mar levaram a igreja de S. Matheus, que hoje se acha em mysterio tão alto que hombrea com a torre da dita egreja, menos a dita torre e frontispício com um bocado do adro (6.).Até 5 de Junho do dito anno, Domingo do Senhor Espírito Santo, sahiu d’aquelle vulcão umas vezes pedra outras areia, em cujo dia sahiu com tanta força que chegou à villa, (7.)e desde este dia até à sexta-feira seguinte deitou tantas cinzas, que abrasaram as cearas de muitas freguezias, e cobriram os pastos de forma que alguns sujeitos varreram os pastos para ver se os gados comiam, mas nem assim podiam pastar e por esta razão morreram muitos gados.Todas as boccas por onde rebentou fogo fumam, mas sem prejuízo (8.), ainda que estamos esperando a cada instante renovação do fogo, porque nossos corações nenhum arde de amor Divino.Em todo o espaço do mez de Maio, em que correu o fogo, nunca anoiteceu n’esta ilha, porque faltando a luz do sol ficava a do fogo."

Mário Torres

21 de Março de 2014