Assim era a devoção

DEVOCAO1

 

Era um dizer por dizer aquele a que a tia Rosa das Arrãs se referia, virada para o adjunto de mulheres de onde sempre saem as novidades e que, na tarde da passada Quarta-Feira de Cinzas, estava reunido no Café do Chiba Ruça: — Há um ror de anos que não vejo, aqui pela Gândara, nenhum pobre a mendigar aquele bocadito de carne pró Santo Entrudo, no Domingo Gordo e na Terça-Feira de Carnaval! Sem dar por isso, ela havia referido a palavra carne neste dia de Santa Abstinência, mas, quando de tal deu conta, logo se persignou e beijou o polegar com que fizera o Sinal da Cruz, na esperança de ainda ser redimida. Ao mesmo tempo, lembrava a quem a ouvia que, naquele dia, tanto era pecado mortal comê-la, como falar dela, ou usá-la!... E aqui, o seu tom de voz era bem incisivo, perante os olhares de rabés duns tantos descrentes que, da mesa ao lado, lhe repostavam com ar de desafio: - ela que venha, ela que venha!

Seguiram-se umas ameaças de inferno sem perdão feitas a tais diabos pela tia Cornélia, que agora lhes ralhava, por eles nem pela Quaresma renegarem os pecados da carne. E voltou às considerações da amiga, comentando com incontido desdém, que nos tempos que corriam já não se encontravam pobres como dantes: — Os de agora são fidalgos, não comem toicinho salgado e muito menos raimoso, que era o que geralmente a gente lhes dava, pois então! A opinião da tia Rosaira, que igualmente fazia parte do ajuntamento, ouvia-se agora, depois de ter colocado a mão esquerda fora do xaile, com uma figa bem à vista, para o caso de ser tentada a pronunciar a palavra proscrita: — Hoje, poucos são os que ainda cevam e matam o porco e, quem o faz, mete-o nas arcas para conservar. Já ninguém tem salgadeira! Inconformada, a Maria Albina, que é zeladora da igreja e sabe bem que as caixas das esmolas já não tilintam como outrora, manifestava o seu descontentamento ao referir que os romeiros deixaram de pagar as promessas como antigamente, promessas que constavam de pés de porco a que se juntavam tantas vezes focinheiras e orelheiras salgadas, que chegavam a ser vendidas às cestadas em honra do Santo António. Tal era a devoção! Também os leitões vivos, de que bem nos recordamos serem ali oferecidos pelos devotos e igualmente leiloados no fim das missas em honra do padroeiro, eram destinados a pagar os milagres das ninhadas bem-sucedidas. Mas também este hábito desapareceu a partir da altura em que passou a ser obrigatória uma autorização para criar e depois poder vender gado suíno — com vossas licenças —, medida que até se aplica aos pequenos agricultores, sem qualquer expressão económica: — Ainda que pouco e raro, este dinheirito sempre ajudava no governo da casa e, no fim, sempre havia um bácorozito sem ofensa —, para assar pela festa ou pela Páscoa, referia o Zé da Neta, também ele abrangido por esta medida que acredita será um dia revogada.

 

António Castelo Branco

 14-03-2025