E O MAR PARECIA UMA CIDADE

BARCO1

 

- Às vezes, à noite, o mar parecia uma cidade, tantas eram as luzes dos barcos que os nossos olhos avistavam. Os guardas limitavam-se a registar o dia e a hora a que eles passavam, e se iam virados a norte ou a sul. De vez em quando lá vinha uma saudação, através da buzina que o homem do leme fazia ecoar, por entre o barulho das ondas, ainda que não conhecesse ninguém. Era o gesto que valia, já que aquele não ignorava que a autoridade estava em terra, no seu posto, e tinha por missão assentar a passagem de cada um! Quem tal trouxe isto à baila, no decorrer de uma recente confraternização ocorrida na Praia da Tocha, foi o Júlio Dinis e o Albino Gandaio, gente destas areias e destas labutas que, pelos anos sessenta, viveram esta realidade. Deliciado, ouvi-os contar como, em cada noite, eles viam nascer à sua frente uma cidade sobre as águas, logo que as embarcações, sempre muitas, iluminavam a espuma das ondas por onde navegavam.
Dias depois, vi confirmadas aquelas palavras, pelo testemunho de Manuel Maricato, ao tempo guarda-fiscal nesta Praia que, acrescentando novos dados, possibilitou que também eu imaginasse as cidades que outrora por aqui flutuaram! - De onde eram os barcos, para onde iam e o que levavam, nós guardas não sabíamos, não senhor, referiu o meu interlocutor, pois esta navegação era pelo alto mar e os binóculos não enxergavam lá arriba! Também nunca foi preciso ir ao encontro de grandes averiguações, acrescentou ele, pois as rondas que cada um dos postos da Guarda Fiscal fazia dentro do seu raio de implantação, respondiam pela segurança desta costa. E, de entre esses postos, mencionou concretamente o da Murtinheira, da Costinha, da Praia da Tocha, do Palheirão e da Praia de Mira, afectos ao comando da Figueira da Foz. E disse ainda, que aquilo que efectivamente se encontrava ou recolhia pela beira-mar, era sempre tão pouco e tão insignificante que não acarretava preocupações.


A propósito de todo este enredo, uma questão passou agora a suscitar a minha curiosidade: - Aonde estarão os registos, aquelas meras anotações acerca dos anos, dos dias e das horas em que os tais barcos cruzaram este nosso mar? Será que não haverá neles outros elementos de interesse, porventura complementares, com mais dados a respeito da proveniência das ditas embarcações, dos seus destinos, e até mesmo das suas cargas? Perante todas estas interrogações e na expectativa de poder vir a consultar a dita documentação, caso ainda exista, entabulei toda uma série de contactos que, em boa hora me levaram até à Divisão da História e Cultura da GNR. Obtidas que sejam as respectivas autorizações, é meu propósito voltar a este assunto e, ao mesmo tempo, procurar enredar todo o conjunto de estórias e episódios que, nesta sequência, me chegaram de viva voz e, no seu todo, se entrosam com a identidade da Gândara.

António Castelo Branco

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