Farrapos, trapos, peles de coelho…
Recordo a figura daquele homem bem-apessoado, apesar da aparência pobre, mas não andrajosa, que nos finais dos anos sessenta, era conhecido em Coimbra como o pregoeiro da Alta. Apresentava barbas revoltas, sombreadas pela aba do desbotado chapéu que lhe tapava a cabeça. Num dos ombros, dois sacos, virados um para trás e outro para a frente, à laia de alforge. Vinha sempre pela hora de almoço, aos domingos, mas não em todos. Mal se anunciava, começavam a ouvir-se as janelas de guilhotina a abrir e os moradores a assomarem-se a elas, mais para ver o visitante e ouvir o seu incomum estribilho, do que para lhe vender o que quer que fosse: Farrapos, trapos, peles de coelho, ferro velho, merca tudo. Este era o seu proclamo, com voz sonante e bem pronunciada, ao mesmo tempo que afavelmente levantava a mão em sinal de cumprimento. E lá seguia! O seu percurso começava sempre no Arco de Almedina, junto ao Júlio dos jornais. Meia dúzia de metros acima, logo parava para saudar o famoso boleiro Manuel Carvalho, que há uma vida se mantinha nas portas da cidade a confeccionar aquelas que eram as tradicionais amêndoas de Coimbra. A retribuição daquela cordial paragem era sempre um cartucho com a primorosa especialidade do Manuel que lhe referia, todas as vezes, ser para adoçar a garganta, pois o pregão assim o exigia! Ao que se comentava, este homem tê-lo-ia conhecido em tempos, sempre se escusando, no entanto, a entrar em confidências acerca dele. Continuando a subir, e já com a cantilena no ar, rumava virado à rua das Fangas, flectindo a certa altura para as escadas que ligavam ao Sousa Bastos, dali para a rua da Ilha, Sé Velha, e por aí fora, mantendo o estribilho na boca: Farrapos, trapos, peles de coelho, ferro velho, merca tudo!
Em bom rigor, eu nunca vi ninguém que viesse à porta para fazer negócio com o Raúl, assim se chamaria este homem, que ainda hoje não sei de onde vinha, nem tão pouco alguma vez lhe perguntei. E isto, porque a sua postura e o seu olhar indecifrável, que não era de mendigo, faziam-me crer que havia, por detrás daquele rosto, algo mais que o comprador de farrapos: um pensador, um penitente, um filósofo, um pregador, um pagador de promessas? Mas que se dizia que tinha quase chegado a padre, lá isso dizia-se!
Por esse tempo, estávamos habituados a escutar um outro tipo de pregões que não eram agrestes, nem faziam doer como este. Deles sabemos hoje, graças ao levantamento e recolha que foi feita pelo Grupo Etnográfico desta cidade, de que se salientam os respeitantes à venda da água fresca, das queijadas de Pereira, das castanhas, das arrufadas, da sardinha dáreia, e de tantos outros! Mais tarde, vim a saber que havia na Alta uma instituição que dava de comer ao Raúl, quando ele lá passava, e igualmente lhe possibilitava que levasse as sobras. Ah, e também se falava que sempre lhe emprestavam livros, muitos livros, que ele no regresso devolvia! Seria para isso o alforge?
António Castelo Branco