NÃO QUERO SER POIPADA

NAO QUERO SER POIPADA1

 

Chovia que Deus a dava!
A novena, que há uma semana as mulheres do Siadoiro andavam a rezar pelas encruzilhadas, estava a ser ouvida lá no céu e os trovejõezinhos tal diziam, como evocava piedosamente a tia Ana Curta, enquanto fazia o sinal da Cruz com uma mão e com a outra mexia as papas de abóbora na grande panela de ferro que estava ao lume.

Vazadas que eram para as bacias de barro, chegavam os torresmos tirados do pote, onde estavam na banha, enquanto o pessoal, que no pátio aguardava pela prometida ceia, era chamado para a mesa. Acto contínuo, logo os homens e os rapazes tiravam os chapéus e as boinas, em respeito pelo Pão Nosso de Cada Dia.

Por sua vez, as mulheres dirigiam-se para o borralho, onde habitualmente tomavam as refeições com o prato no regaço, aussarbando se nada faltava na mesa daqueles diabos!

Esta ceia de papas de abóbora, acompanhadas de torresmos, sempre levavam açúcar e, talvez por isso, tornavam-se uma comida apetecível para aqueles que, no fim de um trabalho à volta, eram recompensados com tal miminho, a que acrescia uma jeropiga e um bagaço para a sossega e umas castanhas e filhoses, se pelo S. Martinho. Tais encontros, pelas relações de boa vizinhança, familiaridade e interajuda, eram frequentes aqui pela Gândara e sempre responderam pelo conhecimento que temos da vida e da forma de estar da nossa gente.

Quando falo desta mentalidade deixo uma troca de palavras a que assisti, deliciado, no decurso de um convívio desta natureza. Era comum, em situações como estas, atentar no que se falava a respeito do mando das mulheres sobre os seus homens.

Constava até, dizia o Penteadinho, que alguns eram mesmo conhecidos por criados e moços delas! Uma vergonha para a terra!

A roda começou numa ponta da mesa e chegou a cada um de nós, que então devíamos justificar, quem mandava nas nossas casas. Não obstante, sempre se ouvia uma desculpa esfarrapada: - Às vezes a minha manda, mas quem manda nela sou eu, empertigava-se o Bébauga!

Outros diziam que mandavam a meias, e por aí adiante, mas era mesmo o ralho das mulheres que se ouvia na rua! Até que chegou a vez do Quinteiro, que era dos que dava pouca confiança à comadre, assim referenciava a sua Rosa, bem se sabendo das valentes escapadelas que tinha e das muitas vezes que não dormia em casa, pois ia caçar para o Alentejo!...

Para evitar perguntas, quando regressava, trazia no cinturão uma trela com pombos torcazes pendurados, os mais parecidos com os bravos, que antecipadamente deixava encomendados à tia Carriça, uma galinheira da sua confiança e aos quais dava um tiro para aparecerem com chumbo quando a mulher os depenasse!

Em vez de justificar a questão do mando, referiu ser ela quem muitas vezes punha e dispunha lá em casa, pois, como ia todos os fins-de-semana para a caça, isso fazia-a sentir patroa. E rematou: - Para além de mais poupo-a!
Num repente e de viva voz, a Rosa, que ali estava ao pé do lume, alevanta-se do mocho e questiona-o, assim a modos de quem mandava mesmo: - Olha lá, mas eu alguma vez me neguei?
E, já agora, quem é que te disse que eu quero ser poipada?

António Castelo Branco