Os naufrágios no Palheirão

NAUFRAGIO1

 

Há dias, evoquei aqui o movimento marítimo que, na década de sessenta, se fazia sentir por este nosso mar. Hoje, trago a narrativa que me chegou de dois naufrágios que aconteceram nas águas do Palheirão, na década anterior, e cujos barcos, espanhóis, transportavam carvão, o que, curiosamente, vai ao encontro da questão que, oportunamente, suscitei a respeito das cargas transportadas pelos barcos que aqui se cruzavam. Para melhor me situar ouvi o imperdível relato do meu amigo Manuel Maricato sobre estes episódios, ocorridos com intervalo de três a quatro anos, praticamente no mesmo sítio, ou seja, a cerca de trezentos metros para sul do posto da Guarda Fiscal. Os incidentes ocorreram de noite, com tempestade e nevoeiro, pelo que os barcos perderam o rumo que lhes era dado pelo farol da Figueira da Foz. Por esse motivo, ter-se-ão aproximado muito da costa ou, porventura, apanhado um banco de areia e encalharam. Em qualquer deles, a tripulação, composta por quatro homens, salvou-se a nado, recorda Maricato que viveu de perto esses acontecimentos. Efectivamente, ele era, por esse tempo, um jovem adolescente, que ia com frequência, mais os companheiros, nadar no mar ali tão perto, subindo vezes sem conta ao mastro da primeira embarcação que ali ficara encalhada, e de onde se atiravam à água até ao momento em que as areias e as marés a engoliram!


Ao que me foi dito, coube à empresa Mónicas, do ramo da construção naval de Aveiro, a tarefa de rebocar, cada uma a seu tempo, as ditas embarcações, o que só se conseguiu fazer com a segunda. Relativamente à primeira, quando a sua tripulação a abandonou, nela ficaram dois cães de grande porte, pertença do comandante. Na altura em que tudo isto aconteceu, andava à catraia, pela beira-mar, o Poeiras, um dos revoltosos do movimento do Pinhal do Povo, da Caniceira de quem, pelo circunstancialismo, tanto se tem falado. Efectivamente, ele tomou esta alcunha quando, em tribunal, disse ao juiz não ter conhecido nenhum dos que apedrejaram a autoridade, pois, de repente, um forte vento, levantou tanta poeira que ele nada viu. Meditava o nosso homem na tragédia deste naufrágio acabado de acontecer quando, olhando uma vez mais para o barcor fustigado pelo temporal, reparou num cão preto empurrado pela corrente, exausto e já sem forças, a nadar virado à praia. De imediato, arregaçou as calças e correu até ao espraiar das ondas, onde o viria a agarrar quase desfalecido. Estava salvo! Após um tempo de repouso, havia que matar-lhe a fome. E o Poeiras, mal chegou a casa, com ele atrás de si, não hesitou em lhe dar a última broa que tinha, enquanto aquele já sanicava o rabo. De seguida, o cão bebeu uma barrigada de água e adormeceu na quentura do borralho até de manhã, altura em que veio ao quintal levantar a perna! E foi nesse momento, agora mais recomposto, que o animal sentiu um imensurável afecto para com este novo amigo, ao ouvir que ele lhe dera nome do barco que ficou no mar: Lezo.

 

António Castelo Branco