Repondo a verdade:

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OS RENDEIROS DE GOUXA E ATELA (ALPIARÇA) - 1941 - UMA VITÓRIA DO DR. CASTELÃO DE ALMEIDA

Segundo o Professor Doutor Elísio Estanque ("Praxe e Tradições Académicas”, edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos), Augusto Castelão de Almeida nunca foi estudante de Coimbra, pertencendo ao grupo de figuras típicas da "academia paralela", "domesticadas, alimentadas e vestidas" pelo estudantes, como seria o caso do "Taxeira" [pp. 72-73: "“Igualmente digno de registo é a popularidade de alguns nomes ligados ao imaginário académico, EMBORA NÃO ESTUDANTES, que povoaram a cidade em épocas distintas, e o papel que desempenharam no universo das representações intelectuais e estudantis. Personagens como o AGOSTINHO ANTUNES, o PANTALEÃO, o PAD ZÉ, o CASTELÃO DE ALMEIDA, entre outros, fazem parte da história da academia de Coimbra, sendo de certo modo apropriados por essa espécie de «ACADEMIA PARALELA» que animava os ambientes boémios e contestatários de Coimbra do passado (Duarte, 2000). Algumas dessas figuras, supõe-se que depois de CONVENIENTEMENTE DOMESTICADAS, e uma vez garantido o seu LUGAR SUBALTERNO na comunidade, sendo ALIMENTADAS e até MERECEDORAS DE VESTIMENTA própria (o traje académico) tornaram-se ícones de uma cultura onde a irreverência e o excesso eram condimentados com a ATITUDE PATERNAL EM RELAÇÃO A ESSES (DÓCEIS) ANIMADORES DA ALGAZARRA ESTUDANTIL. É o caso do Taxeira (cujo verdadeiro nome é Raul dos Santos Carvalheira) …” [maiúsculas da minha responsabilidade]."

A propósito disso, cito do blogue: "Jornal Alpiarcense" a seguinte publicação (de 6/1/2013):

"Os rendeiros da Gouxa e Atela - 1941: Uma vitória do Dr. Castelão de Almeida.

 

Por: José João Pais

Fragmentos da História de Alpiarça

 

Na década de 40, enquanto nos campos do Ribatejo se desenrolavam acções de natureza reivindicativa, em Alpiarça, uma outra luta ganhava contornos violentos. Os actores principais eram também gente do campo, neste caso, pequenos rendeiros. Estamos a falar dos rendeiros da Herdade da Gouxa e Atela, que abrangia áreas do concelho de Alpiarça e Almeirim. De facto, foi em 1944 que se resolveu judicialmente o conflito que opunha os rendeiros ao dono da Herdade. O processo agitou o concelho de Alpiarça, atingindo particularmente a população da Charneca do Frade, hoje Frade de Cima.

Os problemas começam quando em 3 de Julho de 1941 os Condes de Santar vendem a Quinta da Gouxa e Atela à Sociedade Agrícola da Gouxa e Atela, Lda., com sede em Lisboa, cujo sócio principal era Isidoro Maria de Oliveira. Esta sociedade procura passar a propriedade para o regime florestal. Consegue-o em 3 de Agosto de 1942, com a publicação de um decreto, nesse dia, no Diário do Governo. Este despacho inviabiliza a exploração normal das propriedades pelos seus 900 arrendatários.

A passagem ao regime florestal equivalia à morte da exploração agrícola. De facto, como se pode ler no jornal O Século “os rendeiros não poderiam a partir daí cortar lenha dos pinheiros ou outra árvores que tinham semeado ou plantado. Não podiam queimar, dentro das suas terras de arrendamento, mato ou cepas que ali colhiam, nem destruir os coelhos que lhe roíam as vinhas e as aves indígenas que prejudicavam as suas hortas, milheirais e searas; e ainda, sob o risco de pesadas multas, não podiam colher os produtos das suas culturas, nem amanhar as terras desde o pôr ao nascer do sol, nem dentro de igual período, transportar os produtos colhidos de dia, deixando-os no campo com todos os riscos de estrago e furto”.

Era a morte anunciada para quem cultivava a terra. O desespero apodera-se das famílias que viviam apenas daquele pedacinho de terra arrendado. Os rendeiros, cientes de que a razão estava do seu lado, põem o caso em Tribunal, elegendo como seu defensor o Dr. Castelão de Almeida, um advogado de Alpiarça.

 

A primeira medida que tomam, é enviar no dia 19 de Setembro de 1942 uma petição, assinada pelos rendeiros, ao Presidente do Conselho de Ministros, Dr. António de Oliveira Salazar, bem como ao Presidente da Republica, General Carmona, ao Ministro da Economia e ao Cardeal Patriarca, Manuel Gonçalves Cerejeira, cujo teor tem todo o interesse em ser conhecido, porque resume a luta que então se travava.

 

“Por decreto de 3 de Agosto do corrente ano, publicado no Diário do Governo nº 179, II série, foi submetido ao regime florestal a propriedade denominada Quinta da Gouxa e Atela, situada na freguesia e concelho de Alpiarça, distrito de Santarém.

 

A imediata execução daquele decreto, que foi marcada a partir de 3 de Outubro próximo, vem afectar e prejudicar gravemente a vida de 900 agricultores e cerca de 4.000 pessoas, que de há 60 anos para cá, em trabalho fecundo e redentor, têm vindo arroteando grande parte das charnecas daquelas Quintas, então denominadas “D`Africas”, que o saudoso Conde de Magalhães, ao tempo seu proprietário, lhes deu de arrendamento a longo prazo, o os seus descendentes, senhores Condes de Santar, sempre mantiveram até 3 de Julho do ano findo, data em que venderam as referidas Quintas à Sociedade Agrícola da Gouxa e Atela, Lda., com sede em Lisboa.

Têm os peticionários fundados motivos para supor que o pedido de concessão do regime florestal para as Quintas da Gouxa e Atela, solicitado pela sua actual proprietária, foi feito com o deliberado propósito de criar aos rendeiros peticionantes, tais e tão grandes dificuldades que os obriguem a desistir do arrendamento…

Mas os peticionários, ao tomarem do Senhor Conde de Magalhães o arrendamento de vários talhos da charneca para arrotear, receberam também autorização para os plantar de pinhais e vinhas, de oliveiras, figueiras e outras árvores frutíferas e de, até nos mesmos talhos, construírem prédios para seu agasalho e guarida.

E foi assim, Ex.ª, que as terras de mato das Quintas da Gouxa e Atela se transformaram, volvido pouco mais de um decénio, em lindos hortos e ridentes casais, em vergéis ricos e fecundantes, onde anualmente se colhem, em benefício da economia dos peticionários, é certo, mas por reflexo, da própria nação, alguns milhares de pipas de vinho, muitos milhares de litros de azeite, centenas de moios de trigo, milho e arroz, considerável quantidade de legumes e frutas e toneladas de lenha e carvão, para satisfação das suas necessidades domésticas e para aquecer-lhes o corpo nas duras e longas noites de Inverno. A charneca, escaldante e improdutiva, vem sendo assim valorizada de há 60 anos para cá, pelo trabalho constante dos peticionários, dos seus pais e avós que, com a ajuda de Deus, tem arrancado à terra, outrora estéril, fartura, para si e suas famílias, abundância para o país e riqueza para a Nação.

Podem os peticionários continuar agricultando, como até aqui, os talhos de terra que trazem de arrendamento pelo preço de mais de 100 contos anuais, dentro de uma propriedade submetida ao regime florestal? É evidente que não.

Senhor Presidente do Conselho

São os peticionários homens da charneca, a maior parte deles analfabetos, ignorantes do que vai por esse mundo de Cristo, e mesmo até dos mais importantes que diariamente ocorrem em Portugal. Contudo, sabem que V. Ex.ª é o Chefe do Governo da Nação, que dia e noite vela pela tranquilidade do país para maior destino da Grei.

Sabem, Ex.ª, que se há trabalho em Portugal, se há pão para todos e paz bendita nos lares, é porque V.Exª todas as dificuldades remove…

V.Exª um dia proclamou que era necessário que o rico fosse menos rico para que o pobre fosse menos pobre. A Sociedade Agrícola da Gouxa e Atela não fica menos rica contudo, se, mantendo os arrendamentos existentes na décima parte das suas charnecas e pelos quais pagam mais de 100 contos anuais, desistir da incorporação que para eles requereu, no regime florestal. Em contraposição, Ex.ª, os peticionários sendo mantidos nos hortos e casais que vêm explorando há mais de 60 anos, nos vergéis que à força de incessante trabalho e inúmeros sacrifícios tornaram ricos e fecundantes nas charnecas onde a maior parte deles nasceram, constituíram família e querem morrer, continuarão sempre satisfeitos e contentes, a mourejar de sol a sol em seu benefício e da Nação, a viver tranquilos na doce Paz Cristã, que desfrutam e, embora pobres, menos pobres.

Eis, Ex.ª, o humilde apelo que os peticionários fazem em representação de 4.000 pessoas, que, saudando-vos, respeitosamente concluem.

A Bem da Nação

 

Alpiarça 19 de Setembro de 1942”

Seguem-se algumas dezenas de assinaturas iniciadas por: Custódio Francisco, Manuel Simões Capador, Manuel João Caniço, e finalizadas por Manuel Miguel Sardinheiro.

Esta petição não alterou os acontecimentos. Por isso, os rendeiros mantêm-se firmes nos seus propósitos e continuam a sensibilizar as autoridades locais, regionais e nacionais para o seu problema. Mas os novos proprietários avançam para a alteração do regime de propriedade, que estava legalmente atribuída, e já publicada em Diário do Governo, mandando colocar as respectivas indicações nos limites da propriedade. Era inevitável a oposição dos ocupantes. Assim, quando vieram pôr as tabuletas a indicar a zona florestal, os rendeiros, de armas na mão, arrancaram-nas todas. Para tentar pôr alguma ordem nesta autêntica sublevação popular, foi chamada a Guarda Republicana, que chegou aos campos da Gouxa sob o comando do Tenente Luís Ferreira. Os rendeiros não recuam. Querem permanecer nas terras dentro dos moldes anteriores. O confronto tornou-se inevitável. Mais de 40 pessoas ficaram feridas, 6 das quais em estado grave. Foi morto um homem, uma mulher e uma criança. No final a GNR prendeu 50 rendeiros, mas não os conseguiu expulsar das terras. Mantiveram a acção em tribunal pois acreditavam que a justiça, mais tarde ou mais cedo, lhes daria razão. Mas resolvem continuar a desenvolver diligências junto do governo.

 

De facto, a 26 de Julho de 1944 os rendeiros recorrem ao Ministro do Interior, Júlio Botelho Moniz, enviando-lhe um abaixo-assinado, onde reafirmam os seus direitos.

“Os abaixo-assinados, como representantes de todos os rendeiros da Quinta da Gouxa e Atela, sentindo-se altamente prejudicados em virtude dos actuais proprietários quererem fazer d`uns terrenos que são um mimo para a produção, uma coutada, alegando que é terreno montanhoso e inculto, o que não é verdade…

Há rendeiros, conforme se pode provar com recibos, que cultivam as citadas Quintas há mais de 50 anos e que se encontram agora, se V.Exª não puser um travão, na situação de ficarem na miséria, pois que o seu único modo de vida é o da agricultura, como rendeiros. Ainda há dias quando os rendeiros quiseram ir trabalhar nas suas courelas foram recebidos a tiros pela Guarda Republicana a mando do Senhor Presidente da Câmara ou Administrador do Concelho de Alpiarça, tendo sido feridas várias mulheres e crianças, algumas tendo dado ingresso no Hospital de Sº José.

Como este estado não pode de forma alguma continuar devido aos rendeiros estarem com o seu pagamento em dia e terem sido estes quem d`um terreno inculto fizeram com que desse uma produção muito compensadora, embora para isso tivessem tido bastante trabalho, julgamos assistir-nos o direito de continuar a usufruir o produto do nosso trabalho e suor…e agora, depois do novo proprietário ver terrenos que produzem em abundância trigo, centeio, cevada, arroz, legumes, etc., querer, sem motivo que o possa justificar, fazer d`uma quinta, que é, à força do trabalho e persistência, um mimo em produção, uma coutada sem proveito para quem quer que seja; demais, na presente ocasião em que o lema é produzir e poupar.

Em face do exposto, que é a expressão da verdade, apelamos para o são critério de V.Exª, no sentido que a justiça, se somente esta, nos seja feita.

A Bem da Nação

 

Alpiarça 26 de Julho de 1944

Manuel Hipólito Gomes, Fernando D`Almeida, José Florêncio”

Entretanto a decisão do tribunal não tarda. A sentença que então foi proferida veio de encontro aos seus desejos, uma vez que lhes foi favorável quanto ao direito, que reclamavam, de permanecer nas terras. O Dr. Castelão de Almeida já não veria o produto do seu trabalho ser premiado, morrendo pouco tempo antes de ser proferido o veredicto final. Os rendeiros não esqueceram a sua acção e homenagearam-no com o descerramento de uma placa alusiva a esta importante vitória jurídica. A placa foi colocada num local que era um referencial de vida comunitária e por isso não foi escolhido ao acaso. No local houvera antigamente uma eira comum, onde os rendeiros colocavam os cereais, ou para os secar, ou para os debulhar. Hoje, neste mesmo local, que fica no Frade de Cima, funciona a Adega Cooperativa da Gouxa. Dali se enxerga toda a Charneca objecto da disputa que alvoroçou as populações há cerca de 70 anos.

Bibliografia consultada. Pais, José João, “Gente de Outro Ver”,2005

Mário Torres