MEMÓRIAS DA RUA DIREITA

RUA DIREITA1

 

Recordo aqui uma figura já desaparecida da nossa cidade, que durante cinquenta anos exerceu a sua profissão na barbearia Santa Isabel, na rua Direita, de que era proprietário. Chamava-se Olímpio Ribeiro, mas todos o conheciam por Engenheiro, evocando-se ainda hoje a sua forma de estar e a sua postura como cidadão, devotado militante do União de Coimbra e das causas da nossa Baixa.

A minha relação próxima com ele deveu-se à sua disponibilidade para comigo, no decurso de um levantamento, que me propus levar a cabo, acerca da realidade social daquela zona urbana onde, até 1962, existiram casas de prostituição legalizadas. Para levar por diante aquele meu propósito, foi imprescindível a sua colaboração, ao dar-me o testemunho vivo de uma situação que ele bem conhecia e teve à porta durante tantos anos. Para além disso, franqueou-me múltiplos contactos e informações, possibilitando-me obter elementos que, doutra forma, nunca conseguiria e, ao mesmo tempo, usufruir e partilhar outros cenários, outras estórias e outros episódios que extravasaram a missão que ali me levara, mas que igualmente faziam parte do modus vivendi daquela comunidade.

Neste novo clima de convívio, a assiduidade por estas paragens passou a fazer parte das minhas novas rotinas, pois nunca faltavam pontas para agarrar e as conversas sempre foram como as cerejas!

Tomo como exemplo a narrativa que aqui me traz: Certa tarde, quando esperava pela vez na barbearia, apareceu à porta um individuo, a quem o Olímpio, que estava a escanhoar uma barba, fez sinal para esperar. Sem nada dizer, o homem ali se manteve, até que o barbeiro, depois de aviar o cliente, agarrou em dois envelopes e numa caneta, rabiscou neles uns desenhos e escreveu umas palavras. O quê?! Não vi.

Em seguida, meteu dinheiro dentro deles e foi entregá-los ao rapaz, que levantou a mão como se tivesse entendido tudo. E lá foi. O rapaz em questão era conhecido por ali, mas eu ignorava ser surdo-mudo, como me viria a esclarecer o Engenheiro.

Tratava-se do António Bombeiro, uma figura típica desta terra, que todos os meses lhe ia pagar a renda da barbearia e comprar-lhe o passe para o autocarro. Estava eu ainda sentado, a aguardar pelos últimos retoques que o barbeiro não descurava, ou não fosse o corte francês a especialidade da casa, quando o António entrou por ali dentro, a acenar com os envelopes, que foi dar ao Engenheiro. Este confirmou o seu conteúdo e foi poisá-los no aparador, frente ao espelho, após o que lhe deu umas moedas pelo favor prestado.

Mal saí da cadeira, pedi com empenho ao Olímpio que me mostrasse os tais envelopes. Como meu amigo que era, e sabendo serem coisas que me interessavam, não mos mostrou, deu-mos! E eu, que estes anos todos os guardei religiosamente, e que agora resgatei dos meus arquivos, aqui os trago, para que constem das memórias da rua Direita.

António Castelo Branco