Editorial 19/04/2024

EDITORIAL 19 04 24

O INFERNO DAS BOAS INTENÇÕES

Num dos idos períodos antes da comemoração do Natal, da minha infância, era costume convidar o carteiro a beber um cálice de vinho do Porto e comer um doce natalício. Imagine-se que no final da volta qual seria o estado do pobre carteiro.

Mas as coisas eram assim mesmo e a proximidade das pessoas era algo que se cultivava naturalmente. Criando uma empatia entre as pessoas que dissuadia os estados menos nobres de cada pessoa.

Num desses estados do cultivo da empatia, que começava com a simpatia, estava o meu avô. Homem que se orgulhava de ter saído da pobreza mais complicada e que era um reconhecido pequeno comerciante da Baixa de Coimbra. Era dono do Hospital das Bonecas, na Rua Adelino Veiga, o senhor Augusto Fernandes, ora num desses momentos de simpatia convidou o carteiro, o senhor Arménio, que fazia a zona dos Barreiros, em Santa Clara. O pretexto era que o genro, o meu pai, lhe tinha oferecido uma caixa em madeira com garrafas de vinho do Porto “do melhor que havia por aí”.

O meu avô era um patriarca de uma família que gostava muito de vinho do Porto, de que eu orgulhosamente faço parte, por isso pegou numa das garrafas já aberta e serviu ao senhor Arménio um generoso cálice de vinho do Porto. Como era de manhã só foi servido o senhor. Dizia o meu avô: - Oh senhor Arménio, este vinho do Porto vai-lhe dar forças para terminar a sua entrega. Isto é que é um vinho de qualidade como não encontra por aí. É uma especialidade que não encontra em Coimbra.

O senhor Arménio, bem se desculpou com a volta, o trabalho, o ter que beber nas outras casas, mas nada demoveu o meu avô em oferecer o melhor vinho do Porto de Coimbra e até de Portugal. Aquela “especialidade” (como tantas vezes repetia a expressão) não era coisa que se apreciasse muitas vezes e o carteiro para não fazer desfeita aceitava.

Mal colocou o cálice à boca fez uma cara de quem come limão, mas o pobre do senhor Arménio logo corrigiu a expressão para não ser indelicado e bebeu de um trago o resto no cálice.

- Então, senhor Arménio?! É ou não uma especialidade? - sem o deixar responder continuava a elogiar o excelente e raro vinho fino.
O senhor Arménio olhava para o meu avô com algum medo e dizia - Senhor Augusto este vinho é mesmo uma...especialidade, mas eu já estou atrasado...não posso beber mais...tenho tanta coisa para fazer...
O meu avô interrompia-o e dava-lhe a comer um dos filhoses muito bem feitos pela minha avó. Cozinheira de mão cheia.

O senhor Arménio comeu um filhós e sorriu ao paladar. Mas o meu avô acrescentou - Oh homem! Não pode comer e ficar a seco - e vai de lhe encher outro copo da especialidade de vinho do Porto. O homem tremeu.

O meu avô contou-me que nunca mais esqueceu a cara de medo do senhor Arménio quando lhe entregou o segundo copo na mão. O pobre do senhor Arménio pegou no copo e bebeu de um trago. Pegou num outro filhó e saiu a correr da casa do meu avô.

Depois do carteiro sair, o meu avô “rebobinou” a cara estranha quando o convidado bebeu um excelente vinho do Porto e resolveu, tarde de mais, provar o vinho do Porto. Foi buscar um outro cálice e deu uma golada. Cuspiu e mandou um grito em casa: - quem é que pôs vinagre nesta garrafa ?

A garrafa que era de vinho do Porto estava cheia de vinagre de vinho. Mais tarde o meu avô veio a saber pela minha tia, irmã mais nova da minha mãe, que tinham recebido um garrafão de vinagre de vinho e que ela tinha procurado várias garrafas vazias e encontrou a tal garrafa do excelente vinho do Porto vazia e toca de a encher com o resto do vinagre.

Como a minha tia sempre foi uma mulher muito desenrascada, que mexe as mãos mais rápido do que a velocidade do pensamento, acabou por colocar a garrafa com vinagre tinto, que ainda por cima tem uma coloração semelhante ao do vinho do Porto, junto das outras com verdadeiro vinho do Porto - esses sim excecionais.

Escusado será dizer que o meu avô saiu a correr a desfazer-se em desculpas e a compensar o senhor Arménio com uma das suas garrafas de vinho do Porto, mas desta vez do vinho que era mesmo uma especialidade.

Esta história verdadeira que ainda faz rir a família, serve para explicar que muitas vezes há muita gente que pensando estar a fazer as coisas com a melhor das intenções dão cabo dos momentos dos outros.

Com os nossos decisores acontece muitas vezes isto. Ou como o povo costuma dizer “de boas intenções está o inferno cheio”. Nesse sentido apontámos hoje o tema que baseia esta nossa edição de O Ponney.

Para não tornar este editorial tão palavroso, acrescento que errar todos erramos, mas o certo é que possamos reconhecer o erro e tentar emendar as consequências do nosso erro. Esse é que é o espírito de O Ponney: identificar o erro; torná-lo público para que os responsáveis possam reconhecer e emendar o que fizeram errado.

Boas leituras do nosso O Ponney e boas comemorações do 25 de Abril de 1974

José Augusto Gomes
Diretor do jornal digital O Ponney