QUANDO AS INSTITUIÇÕES CALAM OS ASSÉDIOS

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O Ponney apresenta outro caso onde as queixas de assédio são “avaliadas” dentro da própria instituição e fechando os casos entre muros pouco se sabe das suas conclusões e sobre os critérios de juízo. Foi o que aconteceu entre 2021 e 2023 onde foram apresentadas 11 queixas internas de assédio moral e sexual, alegadamente, praticados na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Lembramos que esta instituição, Santa Casa da Misericórdia, foi criada há mais de 500 anos para apoiar pobres e desfavorecidos e segundo os estatutos publicados em Diário da República deve dedicar-se à “promoção do bem-estar da população” e à “realização dos direitos de cidadania”.

No entanto, a julgar pelas queixas, dentro de portas, o bem-estar e os direitos de cidadania estão comprometidos. A instituição acumula queixas de violência física e psicológica, que têm tido uma tendência de crescimento nos últimos anos.

Segundo o DN, os números distribuem-se da seguinte forma: em 2021 houve uma queixa de assédio sexual; em 2022 foram quatro queixas de assédio moral e uma de assédio sexual; e em 2023 registaram-se três queixas de assédio moral e duas de assédio sexual. O total de funcionários da instituição ronda 6.500 pessoas. A Santa Casa não explica se as 11 queixas correspondem a 11 queixosos e 11 acusados ou se há nomes que se repetem.

Uma das quatro queixas de assédio sexual em 2023 visa um responsável por projetos da Santa Casa na área da deficiência. Supostamente importunou de forma abusiva uma funcionária jovem que lhe estava hierarquicamente sujeita. O assédio terá começado em 2022 e estendeu-se até ao início do ano passado, quando a funcionária decidiu apresentar queixa através do “canal de denúncias internas” da instituição — um protocolo obrigatório por lei desde 2022 para permitir participações de suspeitas de corrupção e de infrações nos locais de trabalho.

A alegada vítima não quis falar e pediu anonimato. Mostrou-se atormentada por ter de recordar o caso, dizendo ainda sentir “o medo incutido” durante os meses em que terá sido assediada. Fontes que indiretamente testemunharam os acontecimentos dizem que a funcionária apresentou baixa médica em Abril do ano passado e que a sua queixa não teve o acompanhamento esperado. Em Agosto de 2023 acabou por se demitir.

A funcionária chegou a prestar declarações no âmbito do inquérito interno aberto pela Santa Casa, mas até hoje não foi notificada de qualquer conclusão. Não apresentou queixa-crime junto das autoridades. O acusado, cujo nome não se revela por falta de elementos inequívocos, mantém-se em funções na Santa Casa. Trata-se de um “funcionário de favor” com ligações político-partidárias privilegiadas e conhecido por verbalizar as suas aventuras sexuais, garantem fontes internas.

Ao DN um porta-voz da Santa Casa diz que “não comenta qualquer caso em concreto”, mas não desmente os factos ou nome do acusado. A provedora, Ana Jorge, faz saber que “a existência de um só caso que seja de queixa de assédio moral ou sexual merece a maior preocupação”, pelo que “repudia de forma veemente comportamentos que coloquem em causa os fins estatutários da instituição, a sua missão e imagem junto da comunidade”. A mesma responsável — que tomou posse em Maio do ano passado e que entre 2008 e 2011 foi ministra da Saúde — sugere falta de meios para lidar com estas situações de forma eficaz.

“Qualquer queixa de assédio é motivo de muita preocupação e atuação imediata, sendo fundamental que instituições com a ordem de grandeza da Santa Casa estejam dotadas dos mecanismos necessários para fazer face a estes processos de forma imediata e equidistante”, considera Ana Jorge, de acordo com um porta-voz que respondeu ao DN em nome da administração, ou seja, da provedora.

De acordo com a Santa Casa, as 11 queixas de assédio sexual e moral entre 2021 e 2023 “foram alvo de toda a atenção” e “resultaram em processos que tiveram a devida tramitação” — processos internos, sublinhe-se. “A maioria” foi arquivada.

À luz do Código do Trabalho, o assédio sexual em contexto laboral é uma “contraordenação muito grave” e “confere à vítima o direito de indemnização”. Mas também pode haver lugar a responsabilidade criminal por parte do agressor, desde que a vítima apresente queixa no Ministério Público.

O assédio no local de trabalho é descrito pela Ordem dos Psicólogos (como se pode ler no documento em link https://www.ordemdospsicologos.pt/ficheiros/documentos/opp_perguntaserespostassobrepsicologoseapraticapsicologica_documento_assedionotrabalho.pdf) “uma violação dos direitos humanos e uma forma de discriminação no trabalho”, correspondendo a “quaisquer comportamentos ou palavras indesejadas e com uma conotação sexual, que constrangem ou perturbam a pessoa, afetam a sua integridade física ou psicológica ou criam um ambiente intimidatório, hostil, humilhante e desestabilizador”. Num documento de divulgação, a Ordem dos Psicólogos refere ainda que o assédio sexual “é um fenómeno frequente, embora pouco reportado”.

De considerar que só em Portugal 16,5% da população ativa já passou pela experiência de ter pelo menos uma situação de assédio moral no trabalho e 12,6% foram alvo claros de assédio sexual no trabalho, segundo um estudo de 2016 coordenado pela socióloga Anália Torres a pedido da CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego), que depende do Governo. É considerado o estudo mais recente disponível sobre esta matéria. Foi aplicado a 1.801 pessoas de diversas profissões: 558 homens e 1.243 mulheres.

“Mulheres e homens reagem de formas distintas no momento em que se confrontam com o incidente de assédio sexual no local de trabalho”, lê-se no estudo. “Verifica-se que 52% das mulheres mostram imediatamente desagrado com a situação; por contraponto, apenas 31,3% dos homens têm esta reação”.

AF